sexta-feira, 30 de abril de 2010

A mentira e o silêncio

Sou mentirosa. Cada coisa que digo de mim, mesmo sendo verdade, é mentira absurda. Tudo que sou, também não sou. Tudo que tenho, também não tenho.
Não fosse por isso, seria só silêncios.

(Meados dos anos 90)

quinta-feira, 29 de abril de 2010

O cheiro do lixo

Walace é lixeiro. De segunda a sábado sai de casa quando o dia amanhece e vai para o trabalho. Mora longe da companhia, é preciso pegar dois ônibus. Leva na sacola o uniforme e as luvas grossas. Chega sempre no horário, toma um gole de café e vai se trocar. Sobe no caminhão com os colegas e segue olhando os carros que vêm atrás. Andam um bocado antes de chegar ao bairro em que coletam o lixo. Começam as paradas. Walace corre e grita como os outros, pega os sacos, joga no caminhão, deixa cair uma coisa ou outra e finge que não vê, como os outros. De vez em quando encontra alguma coisa boa no lixo e leva para casa. Um dia levou uma mochila quase nova para a filha pequena.
Walace não reclama. Trabalha a manhã toda. Almoça a marmita fria, cochila na sombra do caminhão, trabalha a tarde toda, encerra o dia. Toma uma ducha e põe de volta a roupa que veio de casa. Não perde tempo com os colegas que maldizem a vida. Não aceita a cachaça que lhe oferecem todos os dias. Não sonha com outro trabalho. Aceita a vida que tem.
Só não agüenta o cheiro que fica no nariz e não sai mais. Quando chega em casa toma outro banho demorado, esfrega cada pedaço do corpo, assoa o nariz com raiva, escova os dentes mais de uma vez, passa álcool nas mãos. Quando sai do banho, vai até a cozinha ver o jantar e reclama com a mulher que não consegue tirar o cheiro de suas roupas. Reclama com os filhos que não se perfumam. Reclama com os vizinhos que a rua cheira mal. Não come direito porque a comida tem cheiro de lixo. Não toca a mulher na cama porque a cama tem cheiro de lixo. Na boca da mulher sente o gosto do lixo.
Vai sozinho para o batente da porta e fica parado olhando a rua. Respira fundo e sente, a cada inspiração, o cheiro fétido. Então respira rápido e curto como cachorro cansado e sente ainda o cheiro do lixo. Entra de novo em casa e não escuta a mulher e os meninos que chamam. Entra no quarto e bate a porta com raiva. Que ninguém o incomode que leva pancada como a porta.
Mas no dia seguinte acorda disposto. Vai para o trabalho sem reclamar. O cheiro entorpece seus sentidos, o dia passa como os outros. Walace aceita a vida que tem.

(Abril de 2008)

quarta-feira, 28 de abril de 2010

Liberdade

Há uma borboleta me percorrendo o pensamento. É uma carícia doce, como a mão de minha avó.
Enquanto ela voa, só penso liberdades. Me arrepio e me engano, livre. É então que viajo por palavras sem asas e sinto cair o cinto que, por segurança, me prende à vida.
Perco o fôlego.

(Meados dos anos 90)

terça-feira, 27 de abril de 2010

Firmina e Maneco

Firmina passava as tardes inteiras pulando corda no terreiro. De costas para a casa, olhando a colina que descia bem em frente a seus olhos. Pulava corda como quem se põe um castigo. Pulava sem fim, sem ter porque parar. Pulava como quem vive e não sabe por quê. Firmina era pequena e sozinha. O sítio era grande, mas era também sozinho. Firmina tinha pai e mãe, o sítio tinha era dono e dona. Zé e Donana, pai e mãe de Firmina, donos do sítio que era grande, mas não muito, e que pouco rendia do muito trabalho que era feito nele. Era horta e plantio de milho e feijão, era galinheiro e chiqueiro e as duas vaquinhas do curral. Era serviço que se fazia em outras terras, era até serviço de faxina que Donana de vez em quando pegava. E Firmina pulava corda enquanto olhava a colina, e se pudesse parar ia pensar que a colina apontava o caminho por onde ir-se embora. Firmina era pequena, mas não tanto a ponto de não temer o que desejava. Que sinal de crescimento é medo. Firmina, por medo do que desejava, pulava corda a tarde inteira de costas para a casa e de frente para a colina que descia apontando o caminho de saída do sítio. Ela tinha nascido ali mesmo, por mão de parteira, mas não entendia nada da vida que passava. Quando o Maneco do sítio ao lado contou da viagem que fez para a cidade grande, Firmina ouviu sem acreditar, que o mundo só podia ser aquele mesmo ali: as plantações, as criações, o pai e a mãe, a corda, o corpo e a colina. E a gente vivendo sem entender da vida. Descendo a colina era tudo igual, era caminho de saída que não deixava sair, que o mundo haveria de ser sempre o mesmo.
Mas enquanto pulava corda, o pensamento de Firmina voava livre e ela quase imaginava o que não acreditava que existia. Mas ela temia tanto que quando uma imagem quase se formava, ela pulava mais e mais rápido e não deixava a imaginação se libertar da certeza de que o mundo era só aquele e pronto.
E foi pulando corda que ela viu o Maneco vindo subindo a colina, já dentro do sítio que era do pai e da mãe e que devia ser igual ao mundo todo. Vinha trazendo uma coisa na mão, e vinha correndo feito doido.
– Olha, Firmina! Olha aqui comigo! Agora você vai ver o mundão que eu vi lá na cidade. Pára com essa corda e olha aqui comigo.
Firmina não parou enquanto ele não chegou no topo da colina, no terreiro bem em frente a sua casa. Maneco trazia uns papéis na mão.
– Que isso, Maneco?
– Pois não são as fotografias que a tia tirou quando fiquei lá com ela, na cidade grande? Olha tudo aqui comigo, e você vai ver que beleza.
Firmina era desconfiada demais e tentou sair sem ver nada, mas Maneco não deixou. Segurou Firmina pelo braço e sentou na grama com ela. Foi explicando cada foto que Firmina pegava nas mãos. Foi contando das coisas que tinha feito e de tudo que tinha gostado. Firmina olhava como quem folheia um livro de histórias. Vez ou outra parava para coçar o bicho que lhe crescia no dedinho do pé. Nem viu Donana que vigiava os dois da porta de casa, que tinha medo das brincadeiras de Maneco que já não era tão menino. Nem viu o Zé que mexia e remexia na ração das galinhas ali por perto vigiando os dois, que tinha medo das vontades da filha que já não era tão menina.
Firmina, nem menina nem moça, olhava as fotos como quem vê figuras de livros.
– Uma beleza, Maneco, mas não foi você mesmo que desenhou, pois foi?
– É desenho, não, criatura, é fotografia, é o que é de verdade e sai aqui no papel direitinho.
Firmina riu de prazer, coisa engraçada era mentira acreditada.
– Pois está certo, Maneco, tudo isso aí é de verdade, mesmo, não é? Mas quem foi que desenhou as fotografias, hein, não vai me contar não?
Maneco suspirou sem saber explicar a fotografia que ele mesmo não entendia direito, mas que todo mundo lá na cidade entendia e fazia sem parar. Como é que pode essa tal de fotografia copiar o que é de verdade sem usar papel nem tinta?
E foi olhando o riso de Firmina que Maneco deu de duvidar das coisas que ele mesmo tinha visto e que tinha posto na fotografia. Sem segurar o olhar de Firmina que continuava firme na certeza de tudo que sabia, Maneco abaixou seus olhos e, sentado no terreiro com o olhar voltado para o chão, não sabia mais do que era que sabia e do que não sabia. Maneco era menino e tinha o olhar voltado para o chão onde Firmina agora pisava firme, batendo a corda e pulando, olhar fixo na descida da colina que certamente levava ao resto do mundo que era todo igual a esse: a plantação e a criação, o pai e a mãe, o sítio e o sítio vizinho, Firmina e Maneco.

(Abril de 2008)

segunda-feira, 26 de abril de 2010

Redenção

Acordei com dor antiga,
desgosto sem fim.
Peguei os vasos de violeta
e fui colocar terra,
precisava.
Sujei as unhas,
lavei corpo e cabelo,
respirei.

Empurrei a tristeza com as mãos.

(Início dos anos 90)

domingo, 25 de abril de 2010

Desterro - trecho

Não sei quanto tempo fiquei sentada na cadeira do consultório, não sei por quanto tempo chorei. Sei que chorei até o fim, até que as lágrimas não subissem mais, até que eu pudesse abrir os olhos e ver o médico sentado à minha frente, ainda lá, ainda à minha espera. Olhei para ele com olhos novos e pensei que ele era bonito e que talvez estivesse certo. Talvez fosse hora de ir para casa, que o hospital não era minha casa. Mas ele não sabia o quanto doía e o quanto tudo era uma grande mentira, pois a casa de Cristiano também não era minha casa, porque eu não tinha casa, porque eu não tinha nenhum lugar possível no mundo, porque eu não poderia mais me apaziguar em um quarto que fosse meu. Repeti então, agora sem precisar gritar:
– Eu não quero sair daqui.
– Por quê?
– Porque estou começando a me sentir bem aqui e há muito tempo não me sinto bem em nenhum lugar.
– Mas é porque está se sentindo bem que deve ir para casa; hospital não é lugar para se viver quando se pode viver em casa.
– Mas eu não posso.
Ele me olhou em silêncio, esperando que eu continuasse, que talvez me explicasse.
– Não posso porque viver em casa seria como respirar a liberdade.
Ele agora sorriu:
– E não é bom o perfume da liberdade?
Fechei os olhos e respirei profundamente. Era bom, era o melhor dos perfumes, mas não cabia mais em mim. Abri novamente os olhos e o olhei sem medo.
– Eu não posso mais sentir o perfume, depois de ter respirado o cheiro fétido da morte.
– A morte, Sofia, é inerente à vida.
– Mas eu senti o cheiro da vida exuberante sendo tragada pela boca fétida da morte, e isso me preenche inteira, não há mais espaço.
Ele então se levantou e me estendeu a mão, me convidando a levantar também. Saímos do consultório e ele me fez andar até o portão do hospital, depois de atravessarmos todo o jardim da entrada. Ficamos um tempo parados olhando a rua. Era uma rua larga, não muito movimentada. Mas movimentada o suficiente para que eu visse crianças, velhos, um casal de namorados, cachorros andarilhos, um mendigo sujo. Vida que caminhava pelas ruas, vida que corria em meu corpo, movimento. O cheiro, o cheiro. Perfume? Cheiro de comida, pão da padaria da esquina. Que simples. Cheiro de pão fresquinho da padaria da esquina. Que simples. Me emocionei com a possibilidade de ver de perto o cesto cheio de pães.
– Podemos ir até a padaria, doutor?
Fomos andando devagar. Entrei na frente. A padaria era grande, bonita. Paredes brancas rodeadas de pães, biscoitos, doces, bolos, roscas. Cheguei pertinho do grande cesto de pão francês, pãozinho de sal. Era cheiroso, muito cheiroso. Perfume? Tive vontade de tocar um deles. Olhei para ele, que imediatamente entendeu e consentiu. Peguei em minhas mãos o pãozinho ainda quente e o cheirei de perto. O perfume, sim, perfume, penetrou-me por dentro e me preencheu com suavidade. Cada célula do meu corpo recebia o cheiro morno e gostoso. Seria gostoso prová-lo, desta vez não olhei para ele, mordi o pão com força sem pedir permissão. Mordi sem doçuras, que morder não é nunca capaz de doçuras. Mordi como se morde. Mastiguei. Engoli. Senti o pão tocar meu estômago, senti que tinha um estômago. Havia um vazio, um espaço por onde o pão entrou em mim. Havia espaço.
Um suave relaxamento me permitiu sentir a suavidade do que me acontecia. Havia um espaço. Se havia um espaço algo poderia entrar e algo poderia se fazer. Havia um espaço... Segurei o pão contra o peito, abracei-o. Cheirei-o novamente antes de dar uma nova mordida. Com a boca suja por farelos que se colaram à minha pele como em pequenos abraços, com um pequeno sorriso que se esgueirava por entre os farelos, me virei outra vez e o vi ainda lá, à minha espera. Quando viu meu rosto, sorriu, e seu sorriso era limpo e largo e me ajudou a abrir-me inteira num sorriso novo. Caminhei até onde ele estava e juntos voltamos ao hospital. Cristiano me esperava no quarto com todas as minhas coisas arrumadas e um vestido novo sobre a cama. Era amarelo com flores. Era lindo e era muito para mim. Como me vestir com tamanha primavera?

(Trecho do romance Desterro, publicado pela Editora Manuscritos, em 2010. À venda na Livraria Café Book, à Rua Padre Rolim, 616, Belo Horizonte - (31)3224 5748)

Sobre o escrever

O Sol me aquece as costas agora, e eu insistindo aqui, com prazer e desprazer, treinando. Como se forma um escritor? É estranha a arte. Um dia a gente descobre: sou das artes, sou artista. E daí? O que fazer depois de descobrir-se? A arte nunca vem pronta. Entre saber-se escritor e fazer-se escritor há um caminho insofismável a ser percorrido.
E eu nem sei o que é insofismável.

(Meados dos anos 90)

O tigre e deus

Tenho muito medo de bicho. Até de tigre. Cachorro, só acho bonito de longe. Se chega perto, quero mais é sair correndo, me esconder e quem sabe ser bicho também. Gosto de gato, porque é bonito e não pede carinho. O que mais não gosto nos cachorros é o jeito que têm de me fazer sentir culpa: olham sempre pedindo, se esfregam querendo brincar, e eu sempre só quero dizer não, que tenho nojo da boca deles.

Igual criança pedindo na rua. Se não dou, sofro. Se dou, sofro também. Tem dia que dou por alegria, ou não dou por preguiça. Não consigo ter um jeito definido pra viver, sigo com o vento. Gostaria de ser um homem de terno e sempre saber o que fazer. É mais fácil.

Ando transformando o difícil em fácil. Já me conformei: sou mesmo sem prumo, desentendida de tudo. Resolvi aceitar. Cada felicidade que vem, agradeço. A cada desconsolo, suspiro.

Saber mesmo, só isso: a vida toda quero continuar querendo amar. Meu coração é tigre e tigre não morre nunca - é nisso que creio. Deus cuida do que creio.

Deus é sempre um susto. Às vezes estou feliz - ontem foi assim - e quase me morro. Quando prevejo o quase, me lembro de deus e agradeço; emocionada, agradeço até por ter uma casa para onde voltar e me proteger da chuva. Quando agradeço, me esvazio. Outras vezes, é o contrário: quase me acabo em tristeza, e então me lembro de deus e peço, e quando peço mais me emociono, e me encho tanto de esperança que me levanto e vou lavar o rosto. Sempre que me lembro de deus me transformo.

E há também as vezes em que digo o nome de deus em vão. Deve ser pecado, mas não me emendo. Se encontro alguém que gosto, digo que deus mandou; se não faz sol quando estou na praia, digo que é maldade de deus. Mas digo sem fé, só por dizer. É gostoso, faz a boca doce.

Deus é a palavra mais linda, mais que amor.

Até desconfio que a beleza do amor vem de deus. Amar é ver deus mais de perto. Ou será que pensar em deus é um jeito de aprender a amar?

Amor se aprende, agora sei. O que dói é não saber como aprender. Se soubesse, ensinaria a meu filho. Só quero é ver meu filho sabendo o amor, o resto esqueço.

Uma coisa já sei: não se pode desistir nunca. Filho, amor desprezado não é o fim do amor, espera com calma que ele renasce, não esquece de esperar. Todo dia vou dizer isso a ele. Quando ele entender, já posso ir.

O amor tem mil formas, para cada um, para cada tempo. O meu jeito, agora, parece um pão fresquinho, nem sei.

Quando criança, assisti Marcelino, Pane e Vino e achei a coisa mais linda. Desde então pão e vinho me lembram menos Jesus do que o filme, e passei a sentir esse aperto por dentro, vontade de poesia.

Vendo a beleza do mundo quase digo que é isso a poesia. Mas não digo. Poesia só nasce quando um coração se comprime no confronto com a beleza do mundo. O que vem depois pode ser um suspiro, ou um poema redondo.

Conheci um dia uma menina chamada Poema. Seus pais não sabiam que toda criança já é, desde sempre, um poema. Tudo o que escrevo é uma busca da primeira poesia, aquela que nasceu na primeira vez em que o mundo e meu coração se encontraram.

O medo que tenho de bicho deve ser o medo que vem do poema que já fui. Queria ser bicho e não ter medo de gente. Tenho mais medo de gente que de bicho, confesso. O medo de bicho é só um fingimento. Mordida de cachorro é um arremedo de dor diante de machucado feito por gente em meu coração.

A coisa que mais me dá medo é susto. O que mais me dá susto é choque. Quando abro descalça o forno elétrico, tomo choque e não me conformo: grito e me sento no chão tremendo até o susto passar.

Choque maior foi quando meu pai adoeceu para morrer. Acho que foi aí que tomei esse medo de susto.


(Meados dos anos 90)


terça-feira, 20 de abril de 2010

Primeiras letras

Por brincadeira, e por amor à criança que fui:


O meu sítio

Um dia, eu e mamãe fomos para o sítio.
Quando nós chegamos lá, nós fomos dormir!
Eu passei uma noite tão tranquila!
E mamãe também!
No outro dia eu comi tanto...
Minha barriga quase estourou!
Eu dormi o dia inteiro.
Só acordei no outro dia!
Eu fui para a aula com tanto sono.
Quase que eu morria de sono.
Eu voltei e caí na cama.
Quando eu acordei, eu levei um susto!
Tinha 1 rato no meu quarto!
Eu matei o rato com 1 vassoura!
O rato ficou todo estremecido!
A vassoura ficou toda suja do rato!
A empregada nunca mais quis varrer o chão!
Mamãe teve que comprar outra vassoura!
Mamãe gastou 300.000.000 de cruzeiros.
Apareceu 999.000.000 de ratos lá em casa.
Nós chamamos a polícia!
A polícia prendeu todos os ratos!
A delegacia ficou lotada de ratos!
E nós ficamos livres dos ratos!

(escrito em 8 de maio de 1976, quando eu tinha acabado de completar 7 anos)

domingo, 18 de abril de 2010

Para começar

Este blog será meu caminho para levar meus escritos para fora de mim. Ou a terra onde tentarei plantar minhas flores. Trarei coisas antigas e coisas novas, grandes e pequenas, inteiras e em pedaços. Espero que seja também o caminho por onde receber de volta frutos e novas flores, de fora para dentro de mim.