sexta-feira, 24 de dezembro de 2010

Natal

Hoje é natal. E o que sinto é um vazio que quer ser preenchido. A bebida e a comida da festa não me atraem. Menos ainda um possível presente. A companhia da família, sim, um leve consolo. Os laços esgarçados se reconstituem levemente. Mas o coração só se aquieta com o amor que sussurra de longe. Amor que não se resume ao que sinto por cada uma das pessoas a quem quero bem. Nem ao amor inteiro que tenho pelas filhas. Nem ao amor de delicadezas que vivo com o homem. Nem ao amor de gratidão que dedico à mãe. Nem ao amor de companhia com que me confortam os irmãos e amigos. E não é uma simples soma disso tudo. É, antes, o que possibilita a existência de cada um desses amores. É o que lhes oferece a substância. Amor que provém, ao mesmo tempo, da distância infinita do cosmos e da interioridade secreta da alma, e que se derrama sobre tudo o que existe.
E é quando pressinto a chegada suave desse amor, que posso dizer: hoje é natal.

(Natal de 2010)

quarta-feira, 15 de dezembro de 2010

O pote de ouro

Era uma vez uma menina que já nasceu dona de um pote de ouro, em um reino onde a noite era sempre escura. Enquanto ela crescia, o pote esteve sempre ao seu lado, mas ela não sabia como utilizá-lo. Ela tinha tudo que precisava, e não se lembrava de usufruir do ouro que era dela. Além disso, muito cedo percebeu que muitas pessoas do seu reino não tinham nem ao menos uma única moeda de lata, e então pensou que era injusto que ela tivesse um pote inteiro de ouro só para ela. Deixou de lado o pote e seguiu crescendo.
Quando era quase moça, decidiu que era a hora de aceitar o que era seu, pois o pote continuava lá, ninguém jamais havia tocado nele. Era que, sendo dela, só ela poderia se servir dele e, portanto, não tomá-lo para si seria o mesmo que transformá-lo em lixo. E ela soube que não devia deixar virar lixo uma dádiva tão preciosa.
Porém, quando aprendia aos poucos a se servir do pote, perdeu seu pai, e sentiu-se triste e culpada, e encheu-se de raiva, e desgostou-se do que era seu, pois não tinha dado a ela nenhuma sorte. Seguiu na vida sem o pote, e sofreu. Sofreu perdas, dores, e, sobretudo, sofreu um imenso vazio que fazia com que não se reconhecesse em nada em seu reino tão grande.
Longos anos se passaram. E ela um dia encontrou um homem que a olhou com amor. E a convidou para um passeio, e depois para um descanso, e depois para a vida toda juntos. Mas ela teve medo de aceitar e disse a ele que não podia, porque trazia no peito uma tristeza e um vazio que nunca a deixariam ser feliz. E contou a ele que tinha nascido com um pote de ouro. E ele disse:
– Para que serve o ouro do seu pote?
E como ela não respondeu, porque pensava que todo ouro era um só, e só servia para juntar riqueza, ele continuou:
– Acho que seu ouro é o que te falta no buraco do coração. É o que vai fazer você ser o que você é.
E então foram juntos procurar o pote, escondido no fundo de um armário antigo. E quando a menina, agora mulher, deixou cair no chão, pela primeira vez, todo o conteúdo do pote, viu a casa toda se iluminar pelo brilho das moedas. E seu coração foi preenchido pela luz, assim como o corpo se preenche com o pão.
E a mulher e o homem caminharam juntos de mãos dadas, e a luz do pote de ouro brilhava intensa nos olhos da mulher, e ela pôde enfim entender que agora poderia dar ao mundo aquilo que antes era só seu. Tendo tomado para si o que era seu, podia agora doar.
E o homem, então, falou outra vez:
– Agora que a luz do ouro que era seu já vive em seus olhos, você já pode se desfazer dele.
Ela sorriu e foi buscar o pote.
O dia já ia longe, e as trevas da noite já se anunciavam. A mulher e o homem andaram em direção à noite. Andaram até que a escuridão se fizesse completa. E então a mulher abriu o pote e jogou com força todo o ouro em direção ao céu. E cada moeda atingiu uma distância imensa.
E a noite não era mais a total escuridão: tinham nascido as estrelas.

(Junho de 2010. Texto escrito para o concurso de Lendas de Tânia Diniz, no qual recebeu o título de "Destaque" - o resultado do concurso você pode encontrar no Blog da Tânia, Mulheres Emergentes: http://www.mulheresemergentes.com/.)

sábado, 11 de dezembro de 2010

Eu e as folhas

se eu pudesse, rezaria assim:
deus, me dá um jeito de viver com calma
me dá doçura a cada dor sofrida
me dá paciência a cada desalento
e leveza para o perdão –
me faz mais simples
a cada dia
e faz crescer em mim os laços
que me unem a tudo o que me cerca
natureza pessoas universo

mas não rezo
porque meu pedido seria menos
do que o tremor suave das folhas mais leves

(Dezembro de 2010)

quinta-feira, 9 de dezembro de 2010

Amanhecer

acordei com uma felicidade mansa
mansa e leve

como se me fizessem cócegas na alma

(Dezembro de 2010)

domingo, 5 de dezembro de 2010

A morte do desejo

eu, que antes era um impulso
agora sou um filete de água
de sangue
de dor

eu, que antes fui um impulso
agora, dilacerada,
sangro
e grito:

e o que grito não se ouve
porque explode em um silêncio surdo
que me comprime por dentro
e me revela na língua retorcida
que não sabe mais o caminho da palavra

eu, que já fui um impulso
agora sou voz miúda e sedenta
e o que me sacia a sede
é o mistério que corre em cada seiva
em cada fragmento de coisa viva
e não viva
que respira para além de mim

e o que grita minha voz surda
é só o desejo passado
que ainda ousa –
depois de ter sido morto

eu, que já fui desejo
agora sou árvore fincada na terra
florescendo,
bela,
enraizada naquilo que a vida me oferece

(Dezembro de 2010)