terça-feira, 29 de novembro de 2011

Casa nova

Minha casa nova tem cheiro de terra molhada.
Entrar nela é como entrar dentro de um sonho.

(Novembro de 2011)

sábado, 19 de novembro de 2011

Aforismo 5

O aplauso é a maior piada da existência.

(Novembro de 2011)

Diário de uma mulher não moderna III

Reencontro, a passos lentos, meu lugar no mundo. Não é um lugar de destaque, não é nem um lugar rentável, muito menos um lugar cobiçado.
É só o lugar que me cabe, feito sob medida. Um canto onde piso na terra e deixo a marca dos meus pés, por um tempo qualquer, antes da chuva.
Depois da chuva, a terra lavada não revela nada, e eu, feliz com o cheiro da terra molhada, nem me lembro de que havia o mercado e de que era meu dever me inserir nele.

(Novembro de 2011)

segunda-feira, 14 de novembro de 2011

Meu pai morreu

Meu pai morreu –
o que vai ser de mim
tão menina
tão sem jeito
tão precisada de pai, meu deus?

Meu pai morreu há tantos anos –
o que foi de mim
tão menina
tão sem jeito
tão precisada de amor, meu deus?

Meu pai morreu de novo
junto do meu sonho de não deixar morrer
nada que fosse bonito
como o abraço do meu pai.
Meu pai morreu de novo
junto do meu sonho-paixão de cuidar de tudo o que é belo
e não deixar morrer o que merece viver.
Meu pai morreu de novo
junto do meu sonho-desejo de ser capaz de fazer viver o que está à morte.
Meu pai morreu de novo
junto do nascimento do meu fracasso em salvar da morte o que é belo.

Meu pai morreu finalmente, definitivamente.
E eu agora não salvo, nem mato,
apenas vivo a vida que me cabe.
E quando a emoção quase me faz ser maior do que sou, me lembro:
nem Deus é maior do que Ele.
E fico pequena, e descanso pequena, e deixo morrer e viver.
E choro e rio com o que vive e morre, em mim e fora de mim.

Meu pai morreu.
Ah, meu pai morreu.

(Novembro de 2011)

sábado, 12 de novembro de 2011

Minha pequena profissão de fé

Creio que há um Mistério que é maior do que eu e que me habita.
Creio que este Mistério vem em meu auxílio.

(Novembro de 2011)

quinta-feira, 10 de novembro de 2011

Hoje

Sonhei que tudo estava vivo depois da morte -
ah, não falo do paraíso dos que sonham com o além,
falo da vida que borbulha incessante
enquanto a morte leva o que é seu de direito.

(Novembro de 2011)

sábado, 5 de novembro de 2011

Cartas marcadas

De repente uma vontade: nunca mais dormir -
de olhos abertos, vigiar o mundo,
e manter tudo vivo,
tudo vivo em seu lugar.
Com olhos atentos,
perceber cada pequena fragilidade do mundo
e correr lá com meu sopro,
e deixar tudo aprumado,
sem sombra da morte.
Mas meus olhos pesam
e o sono me vence.
O cansaço é minha rendição frente
àquela que não se cansa.
Nunca.

(Novembro de 2011)

quarta-feira, 2 de novembro de 2011

Aforismo 4

O sopro da liberdade é o que dá asas ao que é humano.

(Novembro de 2011)

terça-feira, 1 de novembro de 2011

Passagem

Estou deitada, nua, sobre a terra úmida. O cheiro tenro da terra me preenche. A brisa suave me acaricia. O calor do sol me amolece. Estou feliz e vejo o ninho do pássaro se desfazer em milhares de filetes de memória.
Eu, que sou a terra, estou prenhe depois de ter virado a esquina em que o pássaro selvagem se perdeu.

(Novembro de 2011)

domingo, 30 de outubro de 2011

Sobre a paixão

O menino olha atônito para o monstro.
Foge.
Mas foge sem desviar o olhar –
teme ser aprisionado,
e quase não vê que está aprisionado pelo olhar.

O menino enfrenta o monstro que se vestiu de cores encantadoras.
E o monstro se transforma em anjo –
é belo, atraente, e leva o menino ao êxtase.
Ele segue com o anjo, e é feliz.

Com o tempo, as cores do anjo se evanescem.
O êxtase perde sua força, o menino se vê no vazio,
e chora, perdido.
Mas depois, faz o caminho de volta.

O monstro, que não era tão perigoso,
e era até maravilhoso, de repente
não era tão importante.

(Outubro de 2011)

terça-feira, 25 de outubro de 2011

Aforismo 3

Enfrentar um enigma é se deixar transformar por ele.

(Outubro de 2011)

segunda-feira, 24 de outubro de 2011

Novos seres

Uma menina sem modos e um menino sem regras.
Ambos de olhos voltados para fora -
os dela, para o vazio do nada,
os dele, para a vastidão do mundo.
O meu olhar cai sobre eles,
e o que vejo são dois seres fixos como árvores velhas.
Ah, sim, eles me têm habitado por muito tempo,
como as aroeiras da terra antiga dos meus avós.
Têm vivido da minha seiva, e deixado em mim suas sementes.
Na minha ignorância, tenho vivido com eles,
na terra-alma em que sou apenas mais um habitante.

(Outubro de 2011)

sexta-feira, 21 de outubro de 2011

quarta-feira, 19 de outubro de 2011

O elefante-menina

A menina corre por entre elefantes e outros bichos.
Joga flores para o alto e ri enquanto corre.
O céu está azul, a menina nem nota.
Nota só a alegria, a menina que corre.
Quando se cansa, sobe pela tromba do elefante
e se deita em suas costas, a menina folgada.
E o elefante caminha manso, enquanto a menina descansa.
Quem vê de longe, vê um bicho só -
o elefante-menina que anda sobre a terra.
Mais nada.

(Outubro de 2011)

sábado, 15 de outubro de 2011

Exaustão

A terra, exaurida pela espera vã, foi varrida por um vento intenso e revigorante, que levou consigo o ninho do pássaro selvagem.
Se um dia ele voltar, terá que reconquistar o seu sossego.

(Outubro de 2011)

quinta-feira, 13 de outubro de 2011

O grito

Quando o coração já não cabe no peito, e o desejo, quase a romper a pele, impulsiona para a vida, o corpo todo treme e teme.
A boca, tensa, hesita sem saber se contém ou liberta o grito que é como um vulcão.
E por baixo do medo, só a certeza: a vida é maior do que eu.

(Outubro de 2011)

segunda-feira, 3 de outubro de 2011

Quarto cântico

Nas Tuas mãos, repouso.
Mas meu coração inquieto me desperta do sossego,
e, mesmo em Tuas mãos, ainda sofro.
O coração,
como um filhote faminto de fera que ainda não aprendeu a caçar,
chora e pede.
E Tu, como a fêmea que sabe que não pode mais alimentar a cria,
apenas me chama e diz: "caminha".
E eu, entre perdida e assustada,
caminho, choro e peço.
E creio.
E no caminho mais me perco,
no choro mais me desconsolo,
no pedido mais me rasgo.
Mas creio.
Me lembro então de Tuas mãos -
e repouso outra vez.
E o filhote, sossegado, não chora nem pede mais.
Já sabe que possui tudo, se descansa em Tuas mãos.

(Outubro de 2011)

terça-feira, 27 de setembro de 2011

Revelação do óbvio

A menina olhou para o pai e a mãe e entendeu:
Era o fruto do amor deles.

(Setembro de 2011)

sábado, 24 de setembro de 2011

Aforismo 2

Toda dor, se não for na carne, é de amor.

(Setembro de 2011)

sexta-feira, 23 de setembro de 2011

Saudade


De repente uma lembrança: os olhos que me cobrem como as águas do mar não são apenas os dele, são também os do primeiro homem que me olhou e me amou e me carregou em seus braços e me acompanhou enquanto pôde, mas que muito cedo teve que partir e me deixar sozinha, sem o mar, neste mundo tão grande.

E é por isso que esta saudade não tem remédio.

(Setembro de 2011)

quarta-feira, 21 de setembro de 2011

O mais bonito

O homem mais bonito que já conheci tem olhos que, quando me olham, são como o mar sobre mim.

Sinto saudade do mar.

(Setembro de 2011)

sábado, 17 de setembro de 2011

Aforismo 1

A fidelidade ao próprio desejo é a única que vale a pena.

(Setembro de 2011)

quinta-feira, 15 de setembro de 2011

Assalto

Às vezes a vida me assalta com uma intensidade tão grande que quase não suporto. Parece-me então que só uma borboleta teria a delicadeza necessária para não romper o fio do lirismo insinuado.
Eu, atarantada, me sacudo toda sem querer, e o perco.

Mas sossego tranquila.
E espero a nova chance.

(Setembro de 2011)

sexta-feira, 2 de setembro de 2011

Perfume

A menina tocou, de leve, o regaço da mãe.
Era quente. Era perfumado.
E o calor perfumado se derramou
como o leite
por entre as entranhas da menina
que agora sabia:
era bom deixar sair,
como uma má presença que se exorciza,
cada grão de rancor
que amarga a vida e descolore o mundo.
E o calor perfumado fez reviver na menina
o amor antigo e mais doído
que vinha carregando, escondido,
desde antes de ser trazida ao mundo.

A menina então, se olhou no espelho, sorriu,
e correu pela estrada recém desbravada
pela dor.

(Setembro de 2011)

quinta-feira, 1 de setembro de 2011

O descanso

O cheiro de terra úmida se insinua, a felicidade se esgueira por entre as áridas escarpas do caminho que corre no alto da montanha. O céu, muito próximo, consola de azul e branco o vento gelado que não para. O calor, por dentro do corpo que caminha sem queixas, reconhece de longe o sabor do que se insinua, do se esgueira, do que força entrada e quer transformar as escarpas em terra macia e a aridez em descanso.
E quando puder descansar, o corpo que caminhou sem queixas tocará a terra como a um amante. E aspirará seu cheiro tenro e, ébrio, alcançará o ponto mais alto da montanha. E acenará ao pássaro que voa longe, muito longe, e no aceno, breve, estarão juntos, como sempre.

(Agosto de 2011)

sábado, 27 de agosto de 2011

Terceiro cântico

Recebo de Tuas mãos a beleza do mundo.
E choro, choro,
e o pranto vem de um coração já sem fronteiras,
rasgado como uma esponja toda aberta à matéria que a preenche.
A matéria que vem de Ti
e que me joga no mundo com a força de uma fera.

(Agosto de 2011)

terça-feira, 23 de agosto de 2011

Algumas maravilhas do mundo, entre todas as outras

A formiga, que carrega uma folha muito maior do que ela mesma.
O elefante, que passa o dia comendo lentamente, apenas para caminhar lentamente enquanto come.
Bichos e plantas, que vivem na superfície da Terra, como larvas no couro velho de uma bola de futebol.
O bicho-fêmea, que fabrica dentro de seu corpo um outro bicho, e que eu seja um bicho desses.
As estrelas, que são caldeirões de fogo onde é fabricada a matéria toda do universo.
O sexo.
A lágrima.
O riso.

(Agosto de 2011)

sábado, 20 de agosto de 2011

A espera

A menina é agora tão somente uma semente.
E na semente jaz um pedaço de morte, um pedaço de vida.
Recoberta pela terra, ela não respira.
Apenas espera, espera, espera.
Pois a hora de nascer não está inscrita nela.
Será inscrita, a ferro e fogo, na escrita do mundo -
quando seu primeiro membro romper a terra e alcançar o ar,
e se estender, exposto, ao sopro que tudo preenche.

(Agosto de 2011)

quinta-feira, 18 de agosto de 2011

Longe do amor

A menina nasceu na beirada do ninho,
e as asas da mãe mal a alcançavam.

A menina cresceu dando voltas em torno do ninho,
e as asas da mãe, esmorecidas com o tempo, já nem se mexiam.

A menina partiu para longe do ninho,
mas nunca esqueceu aquela fome
e o desejo doído de alcançar o regaço da mãe.

(Agosto de 2011)

segunda-feira, 8 de agosto de 2011

Fênix

Acordei com um susto por dentro: o céu está azul, a brisa sopra suave, o amor que tenho faz carícia em mim mesma.

(Agosto de 2011)

domingo, 7 de agosto de 2011

O hipopotamozinho

Vi um hipopotamozinho na mesa da minha sala. Sorri com ternura e o abracei e o beijei e o desejei. E o contemplei por muito tempo. E sua existência me era doce. E minha alegria por sua existência me confortava a alma. O tomei nas mãos com força e meu corpo todo se esquentou. E entendi que não estava sozinha, porque estava com ele.

E vi, com tristeza, que a vida de quem não o desejou é mais pobre do que a minha.

(Agosto de 2011)

sexta-feira, 5 de agosto de 2011

Segundo Cântico

Perdida estou em Tuas mãos.
Não sei de mim, mas descanso.
Não há mais luta, não há mais desassossego.
Só este roçar estranho do Teu hálito,
este não saber que me conforta de mim,
este desentendimento que me deixa quieta,
que me lança no chão com os olhos colados na imensidão do céu,
com as palmas das mãos voltadas para Ti,
com o coração aberto como uma chaga viva,
à espera da Tua voz.
E bem sei que Tua voz é inaudível,
que os Teus caminhos são incógnitos,
mas mesmo assim, espero.
Espero pelo que não há,
porque aí estão os Teus sinais.
E faço de mim a areia para as Tuas pegadas.
E da minha dor, o material para a Tua ação.

(Agosto de 2011)

quarta-feira, 3 de agosto de 2011

Entrega

O amor é a coisa mais bonita de todas. Uma vez eu amei e não fui feliz, então fui embora e deixei o amor para trás. Tive medo de nunca mais amar, afinal, eu tinha desprezado o amor que sentia. Mas a vida me foi generosa, e amei de novo e fui feliz, muito. Mas desta vez, ele foi embora e me deixou sozinha com o amor nas mãos. Agora penso: o que fazer com este amor que me queima as mãos sem poder sair delas? Não posso desprezá-lo outra vez. Terei que deixá-lo arder até se consumir inteiro. Estou jogada nesta fogueira e meu corpo todo arde.
Não sei o que virá depois das cinzas, mas aceito, porque estou entregue nas mãos do amor, que é a coisa mais bonita de todas.

(Agosto de 2011)

O amor recobre a terra

O pássaro selvagem construiu outro ninho, longe da terra.
A terra sangra outra vez, mas não destrói o ninho do pássaro.
O ninho vazio é a chaga aberta,
mas é também a expressão inteira do amor que se recusa a morrer.
A terra há de se salvar por força deste amor.

(Agosto de 2011)

terça-feira, 19 de julho de 2011

Primeiro cântico

No centro do lago há um brilhante que reflete a luz do sol.
Lá está meu coração.
Lançado para fora de mim.
Lançado de encontro ao mundo.
Perdido.
Perdido de mim.
Perdido em Teu seio.

(Julho de 2011)

sábado, 16 de julho de 2011

A relíquia

A terra descansada vê o voo do pássaro selvagem.
O voo é belo, o pássaro está forte.
Mas o pássaro não é seu próprio guia, há um deus o atraindo.
E a terra sabe que nada pode contra um deus.
Mas em seu seio há também o toque do sagrado.
E ela, dia-a-dia, cuida para que o ninho do pássaro esteja sempre pronto para recebê-lo de volta. Se ele não vier, o ninho se transformará em relíquia e a terra não deixará de nutri-lo.

(Julho de 2011)

sábado, 9 de julho de 2011

Primeiro olhar

passeio pelo mundo como quem acaba de nascer
meus olhos estão livres e veem cada coisa pela primeira vez
a beleza de tudo puxa de minha alma um pranto que não se derrama
apenas me umedece
e úmida de desejo
me abro para a experiência inteira
de ser um ser da natureza –
um ser pronto para a morte

(Julho de 2011)

quarta-feira, 6 de julho de 2011

Depois

A terra e o pássaro selvagem, depois de atravessarem a dor de se perderem, depois do voo do pássaro por terras novas e encantadoras, depois do amadurecimento da terra na consciência de sua impotência, perceberam, não sem espanto, o que jazia impassível no espaço livre entre os dois: tinham juntos construído uma realidade, e a ela só se podia dar o nome de amor.

(Julho de 2011)

sexta-feira, 1 de julho de 2011

O pássaro selvagem

O pássaro selvagem partiu.
A terra toda tremeu com seu voo.
Ele voa alto e belo.
A terra toda vigia seu voo.
O pássaro voa sem olhar para trás.
A terra espera por seu pouso.
Quando o pássaro selvagem procurar por descanso,
a terra transformada terá refeito o seu ninho.

(Julho de 2011)

terça-feira, 28 de junho de 2011

Ocaso

Eu e ele nos encontramos sobre um solo fértil. Rapidamente entre nós nasceu uma relva bonita e simples, era a nossa amizade. Depois de algum tempo, felizes na relva macia que nunca parava de nascer e crescer, vimos o surgimento de uma planta rara, mas muito frágil. Eu imediatamente percebi que era belíssima e que eu queria muito que ela resistisse à própria fragilidade. Me dediquei, com minha alma inteira, a cuidar dela, o mais delicadamente possível, e nunca deixei de acreditar que ela sobreviveria e cresceria sempre, e que seria cada vez mais bela. Ele, apesar de também reconhecer sua beleza, não acreditava que ela sobrevivesse, e era desta dúvida que provinha a fragilidade dela. Era o nosso amor. Mas eu, teimosa e feliz, a despeito da descrença dele e da fragilidade que a planta não deixava de mostrar, continuei cuidando, sempre mais e mais encantada. Ela cresceu e até floresceu em flores que eram a nossa alegria. Ele, apesar de descrente, me acompanhou e apreciou meus cuidados. A seu modo, oscilando entre ainda hesitar e às vezes quase acreditar, também cuidou. Permanecemos unidos por muito tempo neste trabalho, tão belo e prazeroso quanto envolvente; algumas vezes cansativo e doloroso, mas quase sempre macio e tranquilo. E a planta crescia, e as flores de prazer e alegria nos embalavam, e nós estávamos seguros um com o outro, com a nossa planta. Mas, apesar das flores, ela não gerava frutos, e eu sofria com isso, e ele pensava que era assim mesmo, que ela não daria frutos. Mas eu não me conformava e queria o fruto, e pensava que ela não dava frutos por causa da desconfiança dele. Mas, apesar desta dor, ela ainda crescia, e eu pensava que muito ainda havia para nascer nela, novos galhos, novas flores, quem sabe o fruto que eu tanto desejava. Até que ele, irresistivelmente atraído por uma outra planta que tinha nascido repentina e vigorosamente em outro solo, podou a nossa planta na raiz, e se afastou de perto dela. Levou consigo uma parte dos galhos caídos, mas não cuidou mais da raiz que tinha restado no nosso solo. Eu fiquei com o resto dos galhos e algumas flores murchas nas mãos, tentando desesperadamente ainda sentir o seu perfume. Chamei por ele, tentei fazê-lo ver que não podíamos deixar de cuidar da nossa planta, que ela ainda poderia rebrotar. Ele, apesar de sofrer e não conseguir imaginar o mundo sem a nossa planta, não voltou. A força de atração da outra planta era muito grande. E eu fiquei sozinha em nosso solo, sangrando de dor e tristeza, sem saber o que fazer. Até que entendi que não poderia fazer nada, a não ser deixar meu pranto se derramar em nosso solo, e permitir que a natureza conduza o rumo das coisas. Sei que as raízes da nossa planta ainda estão lá, sob o nosso solo fértil. Pode ser que ela não tenha mais força para brotar, e que tenha sofrido tanto com o golpe brusco, que espalhe uma amargura por todo o solo, e não permita que nada nasça nele, nem mesmo a relva macia da nossa amizade. Pode ser que ela não tenha mais força para brotar, mas se aquiete e se deixe virar adubo para que a relva renasça mais bela ainda do que antes, pois agora gerada na sombra da lembrança da alegria que tivemos por termos vivido juntos, ao abrigo da nossa planta. E pode ser que, depois de algum tempo, ela recobre a força, e rebrote. E, se isto acontecer, não será mais frágil: terá a força de tudo o que sobrevive à morte.

(Junho de 2011)

quinta-feira, 16 de junho de 2011

Oração

De repente redescobri o brilhante perdido no meu jardim. E ele é ainda mais bonito do que eu pensava que fosse. Mas é de uma beleza tão delicada que não me fez explodir em um chafariz de alegria. Ao contrário - me levou a um recolhimento tão silencioso quanto o de um monge. E se alguma palavra sair de mim, será: agradeço.

(Junho de 2011)

domingo, 5 de junho de 2011

Acalanto

de cima do muro
olho a cidade a correr
de cima do muro
deixo minar a dor

e gota a gota a dor se derrama de mim

ao pé do muro brotam pontos verdes
em cima do muro me deito
e a cidade corre sem mim -
a erva cresce regada pela minha dor
e me envolve como um cobertor de vida e ternura
que me acalenta de volta à cidade

(Junho de 2011)

sexta-feira, 20 de maio de 2011

O chafariz

Encontrei um brilhante em meio às pedrinhas do meu quintal. Mas o perdi. Se o encontrar mais uma vez, vou festejar deixando sair de mim a alegria toda, como um chafariz de flores.

(Maio de 2011)

sexta-feira, 13 de maio de 2011

Amor

Inventei de estudar o amor – e me servi das sobras do caldeirão em que se misturaram, fervendo, paixão, desejo, cuidado, ternura, amargura, ciúme, alegria, e já nem sei mais o quê. Com estas sobras me fartei enquanto olhava os outros todos que se esbaldavam com seus pratos cheios. Depois de esvaziarmos o caldeirão, nos entreolhamos pesados, e nos descobrimos tão ignorantes quanto estávamos antes.
E então me ocorreu que tínhamos todos sido feitos de cobaias nas mãos do amor, ele sim, o investigador implacável que nos tonteia e nos turva os olhos só para experimentar seu poder sobre nós, seus camundongos de laboratório.

(Maio de 2011)

quarta-feira, 27 de abril de 2011

Definição

Eu sou uma mulher que gostaria de ser natureza.
Talvez eu seja.

(Abril de 2011)

Riacho

tinha um riacho correndo manso
uma menina passando por ele
um passarinho volteando por cima
uma cutia que veio beber

tinha um mundo todo
e um coração dolorido
apertado no susto de não saber correr
só correr, bem manso,
como as águas do riacho

(Abril de 2011)

quarta-feira, 6 de abril de 2011

Diário de uma mulher não moderna II

Eu não tenho telefone celular.
E o pior: nem sinto falta.

(Abril de 2011)

segunda-feira, 28 de março de 2011

O doce e o sal

Quando um dia ouvi um sussurro da vida, e o que ela me mostrava era o seu oposto, tive raiva. Mas minha raiva era nada diante da realidade bruta. E foi esperneando feito criança mimada que me conformei. E a sombra da morte passou a ser a companheira inevitável de todos os dias – e sob esta sombra, as cores do mundo se fizeram mais nítidas, e a beleza mais pungente, como o doce que é ressaltado pela pitada de sal.

(Março de 2011)

quarta-feira, 23 de março de 2011

Diário de uma mulher não moderna I

A mulher moderna tem muitas faces. Concilia o trabalho, o amor e a família, sem se descuidar da própria beleza. Todas as faces se ajudam mutuamente, e nenhuma delas prejudica as outras.
Foi pensando sobre isso que descobri que não sou moderna.
Não consigo me lembrar de todos os cuidados exigidos pelos salões de beleza. Mas tento preservar o brilho dos olhos.
Não construí ainda uma carreira bem sucedida, e já passo dos quarenta. Psicóloga sem clientela, professora de filosofia com poucos alunos, escritora com poucos leitores, tradutora iniciante.
Mas tenho filhas que vêm crescendo ao meu lado, e são alegres e tranquilas. E tenho um amor que me faz feliz. E quando temos problemas, temos tempo para sentar e conversar, eu e elas, eu e ele.
Nada conciliado: Criar filhas atrapalhou minha carreira, e de estudante brilhante passei a profissional sempre iniciante. Quando trabalho, sofro a distância das filhas. E os dias passam, e não estou desocupada e a vida corre e o tempo é sempre belo.
Me ocupo muito no entendimento das coisas e até já sei: É bom não ser moderna.

(Março de 2011)

segunda-feira, 21 de março de 2011

Abismo

Aos quinze anos escrevi: “há um abismo entre mim e o mundo”. Décadas mais tarde, me vi nos braços da alegria de estar viva em um mundo tão bonito. E agora, já entrevendo a velhice que me lança seus primeiríssimos sinais, reencontro o abismo.
Me lanço e sei que penetro a fresta por onde encontrarei meu jeito próprio de caminhar: um jeito manco que não me impede a marcha.

(Março de 2011)

sexta-feira, 4 de março de 2011

Discrição

chove bem manso
penso em você bem calma
quase nem faço barulho
quando ando pela vida

(Março de 2011)

terça-feira, 22 de fevereiro de 2011

Para ele

amor
que não dói
que não quer possuir
que não teme perder

amor que alegra e me faz agradecer
e desejar mais amar

era isso o que andei procurando
e que encontrei

e agora, com o presente nas mãos,
ando torta, bêbada de alegria,
sem rumo nem nada
e caio no chão olhando para o céu
e se tem estrela, lua, ou sol,
nem me importa –
tudo brilha para mim
e se um dia a noite vier escura,
terei a lembrança da luz
e da lembrança criarei um mundo

(Fevereiro de 2011)

domingo, 30 de janeiro de 2011

Prisioneira

a cidade me turva a vista com seus tons de cinza –
saio para me refrescar e a natureza me colore a alma
verdes, azuis, vermelhos e amarelos
e mais o canto dos pássaros e das águas
e mais o silêncio que passa por entre os sons

quando volto, crescida por dentro e com olhos mais livres
sou como um animal que se debate contra as grades
os olhos turvos, a saudade do silêncio
e a leve lembrança que é quase mais do que um consolo

(Janeiro de 2011)