sábado, 22 de dezembro de 2012

Além da cegueira

enfio a mão no meio da lama
e nada encontro além de mais lama
o menino tira a mão rápido e diz: ouro!
e eu desdenho e vejo lama
a menina mergulha e se levanta
e o homem que passa grita: brilho!
e eu desdenho e vejo lama
enfio os pés e quase o corpo todo
saio de lá e sou toda lama
e a mulher me vê de longe e grita: pérola!
e eu, que só desdenho, vejo lama

e sei que ninguém ama a lama
e escuto outro e outro grito:
ouro! brilho! pérola!
e fecho os ouvidos e olho só para baixo
e vejo lama, e penso lama, e creio lama

surdez e cegueira me consomem
não sei de mim além da lama
tento ver pelos olhos dos outros
mas a farsa me consome
não vejo o que vêm
e o que sou é o que vejo
e me faço ser o que vejo
e a lama me revolve e resseca minha pele
sufocando tudo que ainda respira em mim

mas vejo pela fresta da pele ressequida
e anseio e quero e desejo
quero ver o que não consigo
quero crer no que não creio
quero viver do que não sei

quero ser o que sou:

(Dezembro de 2012)


sexta-feira, 30 de novembro de 2012

Entre

Minha casa se duplica em duas.
De minha varanda vejo a outra,
semi escondida entre árvores muito antigas.
Parece que é lá que eu deveria viver.
Acorrentada pelo medo, não saio de onde estou.
Empurrada pelo desejo, não me aquieto onde estou.
Começo a caminhar devagar, carregando as correntes.
O cansaço é enorme, mas o desejo não cede.
Chego ao riacho que corre entre as duas casas
e me deito com o rosto na água.
Na exaustão, me entrego.
Entre uma casa e outra
entre o conhecido e o enigma,
descanso.
Amanhã me levanto outra vez,
e talvez as correntes tenham se desprendido.
E talvez eu abra as portas novas
e veja de lá, não sem saudade,
a minha varanda velha.

(Novembro de 2012)

sexta-feira, 16 de novembro de 2012

Prisão

O pássaro está preso no coração da sua terra.
Ela quer libertá-lo, mas não consegue.
O pássaro se aninha e chora.
A terra quer libertá-lo, as portas estão todas abertas.
O pássaro se comprime em si mesmo, se aninha, e chora.
A terra, sufocada, olha para o horizonte ao longe
e tem saudade do voo do pássaro.
O pássaro se contorce, a terra não tem dó.
A terra expele o pássaro que chora como uma carne expele um espinho.
A terra quer vê-lo fora de si.
Quer ver de volta o seu sorriso.
Quer ser de novo coberta pelo seu olhar.

A terra está cansada.

(Novembro de 2012)

segunda-feira, 12 de novembro de 2012

Pico

Do cume do pico, a menina sorri.
Chegou onde queria chegar.
E agora se lança na descida,
desconhecida de si, entregue
à força bruta da vida
que a envolve
como um manto de calor e susto.
E a vida se enrola nela
que sempre tinha buscado apenas isto:
estar pronta para
se abrir.
A menina-flor.

(Novembro de 2012)

terça-feira, 6 de novembro de 2012

Sétimo cântico

A totalidade do mundo repousa em um único ponto.
Eu, toda prenhe, toco de leve o ponto, e tremo.
A vida toda se desmancha, e só o que fica é a luz.
E o sorriso me toma,
e olho pela janela os bichinhos,
e o sorriso se expande -
sou menor do que eles.

(Novembro de 2012)

quarta-feira, 17 de outubro de 2012

Alvorada

A menina,
depois de reunir em si
tudo o que tinha de mais
bonito
e raro
e simples
e oferecer ao moço que a encantara
e vê-lo rejeitar sorrindo sua oferenda,
recolheu-se em si
e deixou a dor vazar lenta
gota a gota
até que só restasse um filete de água
onde outrora havia um mar
e então
desentendida de si
viu no quintal de casa um arco-íris
e mergulhou no filete de água sem medo nem nada
e no fundo da água reencontrou o mar
e a água toda provinha do mesmo fundo de onde vinha a dor
do mesmo mar de onde vinha o amor
da mesma alma que lhe sorria nos olhos
da vida mesma
que era simples e uma só - vida de menina,
de menina do mar.

(Outubro de 2012)

sexta-feira, 14 de setembro de 2012

Espera

O pássaro selvagem repousa no coração da sua terra.
Ele não sabe, mas lá está em repouso.
Ele não quer, mas lá permanece.
A terra, toda coração e garganta,
mal respira, sufocada pelo pássaro que não voa,
mas que também não morre.
Em espasmos, ela tenta retirá-lo.
Em agonia, ela o retém.
Entregue, a terra espera.
E já nem sabe o quê -
se o alívio do voo definitivo do pássaro
se a alegria de sua permanência consentida.
Espera, porque nada mais pode.
Espera, porque nada mais.
Espera, porque.
Espera.

(Setembro de 2012)

segunda-feira, 27 de agosto de 2012

Sexto cântico

Um corpo, um sonho
pele que me contém
e que, furada em poros,
me liga àquilo de que me separa.

Nos poros, Ele.

É assim então que -
porque sou furada na pele
encontro aquele que me contém.

segunda-feira, 20 de agosto de 2012

Vislumbre

A terra, quase já pronta a viver sem o pássaro selvagem, o viu de longe.
Apesar da distância, reconheceu suas cores e rapidamente uma relva suave a cobriu por inteiro.
Fertilizada, mas ainda impotente, soube que permanecem unidos.

(Agosto de 2012)

domingo, 5 de agosto de 2012

O umbral

A menina cruza o umbral
- susto -
A menina para sob a fumaça da encruzilhada
- dor -
A menina prossegue
e o que vê depois da fumaça
é translúcido
A luz cristalina e absoluta
revela o que a fumaça escondia:
o vazio pleno de nada

Extasiada, não sente saudade de tudo o que era.
Apaixonada, se lança no meio da luz cristalina e sabe
que tudo o que era será o adubo a fertilizar o que virá a ser.
Como uma planta que nasce no tronco caído da árvore morta.

Mas a menina tem seu segredo:
a luz a convida para ser,
e o convite é uma permissão -
é a oferta do direito de ser.

(Agosto de 2012)

sexta-feira, 3 de agosto de 2012

Impotência

Dizem que a vida é vasta.
Pois sim, a vastidão do céu é aterradora.
Mas a vida, a vida mesma,
a minha, a sua, uma vida qualquer -
ah, a vida teme a vastidão e se recolhe.
E passa-se o tempo de uma vida circulando o mesmo buraco.
Dia após dia, circulando o buraco.
Noite após noite, circulando o buraco.
Sonho após sonho, circulando o buraco.
E quando uma alegria repentina leva para longe,
o buraco chama de volta como um ímã poderoso.
E quando uma tristeza pesada quase joga para dentro -
e alguns de fato caem sem chance de volta -
o buraco expele para fora como um corpo expele um espinho.
E a vida volta ao seu dia após dia, sonho após sonho.
Longe, longe, longe
longe do buraco, haveria de ser o paraíso,
Pasárgada,
lá onde o peso do meu corpo sucumbiria à força das minhas asas.

(Agosto de 2012)

terça-feira, 10 de julho de 2012

Amor de si

No meio do peito
explode a bomba
- flor
rosa
cogumelo -
No meio do peito
arrebenta
- sem dó -
a força estranha
o que não tem nome
o espanto

Pavor

Vejo o guerreiro de espada em punho
Não!
Vejo o guerreiro e tremo
Não!
Vejo o guerreiro
e nos olhos dele o ódio -
o ódio que o preserva vivo ao fim da batalha

(Julho de 2012)

terça-feira, 19 de junho de 2012

Aforismo 8

O sentimento de culpa é um subproduto do amor.

(Junho de 2012)

quarta-feira, 13 de junho de 2012

Entre um ponto e outro

Lanço-me como dardo
de um lado a outro
do jogo desumano
entre o excesso e a falta.
E sei que há quem creia na existência
do campo saudável do equilíbrio.
Ah, o sorriso me assalta
- sardônico -
de novo, mais uma vez,
junto à certeza maldita
que tanto me maltrata:
deste campo sou sempre
lançada para fora
ansiosa pelas alegrias do excesso
partida pelas dores da falta.

(Junho de 2012)

quinta-feira, 7 de junho de 2012

Lagarto e flor

Quisera ser simples
como o lagarto que atravessa
o muro do meu quintal.
Mas não.
Sou cortada de cima a baixo
pela lâmina impiedosa da razão.
E se tento viver sem ela,
como uma flor que brota
- por nada -
me arrebento
me esfolo
nas armadilhas
que a própria razão construiu.
Ah, no mundo humano não há mais lugar
para as flores
os lagartos
as mulheres.

Quisera ser simples.

(Junho de 2012)

quinta-feira, 31 de maio de 2012

Do que sinto falta

Sinto falta de coisas simples
como café com bolo
sexo
e doce de leite na colher.
Sinto falta do sorriso na hora de acordar
da companhia no banho
e até da raiva na hora da despedida.
Sinto falta da esperança
de ler uma mensagem nova
da alegria de um poema
e do abraço cheio de saudade.
Do cinema
dos jantares
da cozinha
das viagens.
Sinto falta do que virou passado
antes de ter se tornado plena realidade.

(Maio de 2012)

sábado, 19 de maio de 2012

Depois da procura

No meio do peito explode uma estrela
Força - Luz - Calor

No meio do peito nasce uma raiz
Broto daquilo que

         eu sou

E daqui para a frente
Não há mais procura

Há apenas o correr tranquilo
das águas de um rio manso
que corre a seu tempo
e que se nutre da vida orgânica
que corre com ele -
ele próprio serpente límpida
que penetra a terra sem se esgotar

Há apenas o correr tranquilo
das águas de um rio morno
que aquece sem queimar
e refresca sem esfriar

Calor tenro de fruta madura
que se doa à mão que colhe -
fruta macia que se adere à língua
e alimenta enquanto acaricia

Há apenas um
ânimo
um sonho, um afago
uma vida que se une a seu destino

(Maio de 2012)

sexta-feira, 4 de maio de 2012

Um bicho qualquer

Sonhei com uma girafa-camelo na beira da praia.
A praia era pequena, ela andava sem jeito e tinhas listas de zebra.
Eu olhava sem susto -
escondida no meio do meu corpo, a certeza:
eu sou assim também, uma girafa-camelo com listas de zebra,
uma junção de coisas de carne e peso,
um bicho passando pelo chão da terra,
um bicho qualquer.

(Maio de 2012)

sábado, 28 de abril de 2012

Lembranças

Um doce, flores na areia, a praia, o mergulho
O cavalo, a terra, o sol, o rio
Céu de estrelas, silêncio, os pés no chão
A menina correndo no meio de tudo
A menina e as coisas da terra
E no meio do coração da menina
o buraco, a dor
entre as paredes brancas em que dormia e acordava
no meio da metrópole

(Abril de 2012)

segunda-feira, 23 de abril de 2012

Amanhecer

Manhãzinha -
um sorriso escondido
um azul sem jeito
uma delícia no peito.
Eu correndo de carro,
a vida correndo lá fora.
Eu pensando em você,
você vivendo sem mim.
Eu vivendo então -
um azul escondido,
uma delícia sem jeito
e a esperança matreira -
ah, a vida, a vida,
um dia ela amolece.

 (Abril de 2012)

terça-feira, 17 de abril de 2012

Meio-dia

No alto da colina, metade do caminho. Energia contida. Um suspiro, um respiro - pausa dolorida antes do início da descida.

(Abril de 2012)

O aniversário

Era um dia tão bonito!
Era o dia do meu aniversario!
Vocês sabem qual é o dia do meu aniversario?
É dia 17 de Abril no sabado.
Eu fico tão feliz dia 17 de Abril!
Eu ganho tantos presentes!
Eu vou dormir tarde... tarde...
Porisso eu adoro o dia 17 de Abril!
Quando chega 17 de Abril eu fico alegre... alegre...
Mamãe faz coisas gostosas... gostosas...
Ela faz tortas... e mais tortas...
Eu adoro tortas!
Eu bebo cocas... e mais cocas...
Eu como comidas... e mais comidas...
Aniversario é uma delícia!
Se vocês não açham eu acho.

(Abril de 1976, quando fiz 7 anos)

sábado, 14 de abril de 2012

Aforismo 7

Família: um sossego no meio do peito.

(Abril de 2012)

sábado, 24 de março de 2012

Sem fim

uma gota
um sonho
a chuva
um canto
recanto, reconto
e eu dentro
feito gato no novelo de lã
e eu dentro
feito um pombo na caixa fechada
presa -
da prisão, a soltura
da soltura, um medo
eu dentro, nem temo
eu solta, um susto
um susto, um sonho
eu simples, que coisa -
eu mesma no colo do gato
no dentro do novelo
no conforto do sonho
eu solta no perigo da rua
no de dentro da vida
eu solta sem medo
sem rumo nem nada
eu que nem sei
que sonho, que medo, que nada
eu simples, vivendo
eu nada, que nada
no meio da vida
da vida que é nada
da vida que é minha
um nadinha de nada
mas tão bonitinha
feito o sorriso do menininho
que nem sabe de nada
e vivo danada
danada da vida
zombando de mim
que simples, que coisa
que gozo de nada
que nada de gozo
que coisa mais boba
uma vida que passa
que coisa mais linda
uma vida de graça

(Março de 2012)

terça-feira, 13 de março de 2012

O oco

E no oco do mundo havia um segredo: aquele que nos move incógnito e que revolve as coisas até elas se transformarem em seus contrários, mistura de amor e esquecimento que forma a massa nova da terra aberta à germinação.
E no futuro há apenas o sopro que vem do oco das coisas.

(Março de 2012)

segunda-feira, 12 de março de 2012

A menina e o diamante

A menina, com as mãos vazias, já não sente saudade do diamante perdido.
Percorreu ruas novas, revolveu as lembranças.
Até que um dia topou com uma pedra qualquer pelo caminho -
a pedra do poeta -
e caiu exausta,
e enxergava claro,
e o que via doía e libertava:
O diamante era oco.

(Março de 2012)

terça-feira, 6 de março de 2012

Pedro Paulo

Há algum tempo venho cozinhando a ideia de que toda pessoa tem a missão de construir uma explicação do mundo ao longo da sua vida. Hoje por acaso encontrei no jornal alguém que fez isso.
Ele se chama Paulo Marques de Oliveira, ou Pedro Paulo, tem 86 anos, mora em Salinas e escreveu coisas assim:
"Deus não tem ôlho de carne, semilhante do homem, o ôlho de Deus é outro sistema."

(Março de 2012)

domingo, 4 de março de 2012

sábado, 3 de março de 2012

Expurgação do ódio pela morte

A menina se levanta, como um gigante, da terra exaurida.
De sua altura gigantesca, olha o mundo sem dó.
Ao longe, bem ao longe, vê o voo do pássaro.
Empunha arco e flecha e atira.
O pássaro cai. A menina volta ao seu tamanho pequeno.
Suavemente, pega o regador e nutre o pé de amora recém plantado.

(Março de 2012)

sexta-feira, 24 de fevereiro de 2012

Quinto cântico

Meu coração se expande.
Sufocada, quero gritar.
Sufocada, silencio.
Que grito seria possível para dizer de Ti?
Que som seria suficiente para revelar a Tua presença?
Que sussurro poderia tornar visível o conforto de me deitar em Tua cama suave?
Deitada em Tua cama, preenchida pela Tua presença, me calo.
Mas bem sei que meus olhos Te revelam,
porque Tu sais de mim junto do amor que me liga ao mundo.

(Fevereiro de 2012)

A visita

O guarda-chuva aberto
guardou da água
meus cabelos e meus olhos,
mais abertos,
acumularam encantos.
Foi quando acordei de repente,
apaixonada, e você
me olhava em silêncio,
seus olhos convidando para a vida.

(Meados dos anos 90)

quinta-feira, 16 de fevereiro de 2012

Canção para acalmar o pássaro selvagem

A terra, que nunca se cansa de reviver, está livre e nua, pronta para a vida, mais uma vez.

(Fevereiro de 2012)

quarta-feira, 8 de fevereiro de 2012

Dividindo a culpa

Transformar-me... deixar de ser o que costumava ser, para ser o que sou. Ah, isso é doloroso como deixar o ar abrir os pulmões por dentro pela primeira vez. E é assim que me sinto, partida por dentro, menina recém-nascida por meio da dor de se libertar de partes daquilo que fazia parte de mim. Arejada pelo vento que vivifica e machuca, ao mesmo tempo.
E de tudo o que é novo agora, uma coisa sobressai entre as outras: a consciência de que não sou culpada por tudo de ruim que me acontece. Os outros também têm sua parte...

(Fevereiro de 2012)

domingo, 5 de fevereiro de 2012

Descoberta espantosamente óbvia

Eu sou um animal.

(Fevereiro de 2012)

domingo, 29 de janeiro de 2012

O sonho e o céu

Hoje vi o céu em tons de cinza misturados com rosas e laranjas e azuis. Era quase noite e chovia, mas o sol ainda deixava seu rastro.
E à noite tinha sonhado que alucinava cenas azuis de águas e céus.
Delírio dentro do sonho, cores reais no céu sobre mim - e tudo com o tom exato do círculo mágico que alucinava meu desejo de infância.
E eu enfim conseguindo dizer: minha vida começou.

(Janeiro de 2012)

quarta-feira, 25 de janeiro de 2012

Aforismo 6

Não realizamos sonhos, entramos neles.

(Janeiro de 2012)

domingo, 8 de janeiro de 2012

Depois da casa nova

A menina pisa na terra molhada e se molha.
A menina não sabe mais de si.
É toda cheiros e novidades, a menina reinventada que ainda chora por seu amor e sorri rasgada para o mundo todo novo - a menina nova que nasceu na terra tenra por entre as folhas.
Menina-lagarta, menina-flor, menina-bicho, menina que chora.
Quase mulher.

(Janeiro de 2012)