segunda-feira, 30 de outubro de 2017

O abraço

Dói o meio do peito.
A menina vem e abraça o peito que dói.
O abraço não cabe.
O peito sangra.
O abraço insiste.
A menina olha.
O peito rasga.
O abraço invade.
A menina ri.
Dói ainda o meio do peito.
O abraço espalha.
A doçura vem.
O peito respira.
A menina dança.
O peito expande.
O abraço cabe.
O amor derrama.

quarta-feira, 18 de outubro de 2017

Conversa com Adélia

Tudo está vivo.
Meu deus,
nada escapa.
Tudo está vivo e remexe
- ah, não há morte então.
Átomos mexem,
partículas de átomos remexem.
A morte inerte não encontra espaço
por entre tudo que mexe e remexe.
Eu me inquieto
me entranho
me estranho
mexo e remexo.
Não há morte em mim.
E em tudo que vive
me assombro.
Em ti me assombro.
No amor mais me assombro.
Na Tua sombra, descanso.

É Deus a morte então?

terça-feira, 15 de agosto de 2017

Chamado

O sangue pulsa e corre
por entre as dores todas
que acumulei.
O olhar cansado acompanha
o fluxo contínuo
que não se retém.
São veredas tortas
por onde a alma se procura
e mais se perde.
Por fora, num sopro,
um susurro
chama.
Um alento ao longe,
muito longe.
Uma promessa.

sexta-feira, 28 de julho de 2017

Ferida

Pego nos braços o cão ferido
aperto, sufoco
respiro por ele.
Toco a ferida e ela é minha.
Sopro para reviver
e é a mim que revivo.
O cão entranhado
percorre o meu de dentro.
A ferida se expõe
de dentro para fora.
Cheia de chagas
purgo
e o pus me limpa e me mostra.
Matéria bruta
que é minha e sua.
Que é do cão e da ferida.
Etérea e carnal.
Fio de água no leito morto do córrego
fio de sangue no corpo morto do cão.
Fio que vive.

quinta-feira, 27 de julho de 2017

Santana

Umbigo é o que liga ao que nutre -
ao pedaço de chão de onde crescem as veias.
As veias todas retorcidas inflamadas pelo sangue que corre mais e mais rápido,
a veia no pulso a ponto de ruptura,
a dor no peito a ponto de descanso.
O corpo espalhado na terra, a cara no chão.
O avô desenhando os planos
a avó ao lado
as crianças nascendo sem medo
o medo vindo depois.
Da sacada, a curva do rio.
O rio parado, o vento parado, o tempo enfim parado.
Camadas de passado se superpondo ao futuro -
o entrelace do conhecido com o desconhecido.
Eu deslizando pelas frestas abertas
sentindo os cheiros todos
do avô
do tio
dos santos
das águas
terras
ingazeiros.
O céu baixo se oferece.
O céu e o rio se entregam, tudo é fogo.
Santana cai no rio, o rio faz curva, a alma cai e desce.
Raízes, umbigos, rizomas.
Eu espalhada, sem nome, sem mim.
Eu raízes, umbigos.

quinta-feira, 15 de junho de 2017

Aforismo 26

O outro nome de deus é: Desejo.

sexta-feira, 21 de abril de 2017

Submersa

Ele chega repentino dizendo
 - amada -
e o amor como água se despeja em mim
 - me afogo.
Viro bicho inquieto
eu que sou só um nada sem flor
uma coisa à toa.
Me ama por quê?
E eu, que sei amar um galhinho qualquer de mato que cresça por perto,
quase pressinto que ser amada é um dom justo.
E eu, que nado e boio sem esforço,
me entrego ao rio intenso que me envolve.
E bebo em goles grandes a água que só aumenta.
E no avesso de mim as correntes se entrecruzam.
Amada, me desfaço.
Amada, me rebroto.
A Tua seiva-amor me alimenta.

terça-feira, 4 de abril de 2017

Presença

Tudo em mim está aberto agora
vejo a belezinha besta de cada flor do meu lençol
sinto o cheiro do bolo que fiz na semana passada
recebo o suor do homem que já se trocou
pressinto a lua crescente pela janela fechada
expando-me
livre
respirando, respirando
inteira.
Porque inteira sou no Teu sopro
Teu corpo.
Aberta
qual peneira que não carrega  água -
que filtra a luz que cega
e me expõe ao avesso diante de Ti.

E o Teu halo me arrepia
dentro e fora
no peito e na pele.

Ah, Deus, me sossega dessa alegria,
vai-Te embora,
me deixa dormir.

Aforismo 25

Deus é onde eu descanso.

quarta-feira, 29 de março de 2017

Aurora

O pequizeiro está sem folhas,
sem galhos, só tronco.
Olho e choro, quem fez assim?
Não há ninguém por perto, eu e ele, só.
Tronco ferido, eu partida.

O pequizeiro foi podado.

Inteiramente podada, eu sigo.
A dor lancina e faz sangrar
cada cicatriz.
Junto à dor, a espera.
Foi Ele quem fez a poda.
E eu não sei nada do novo por vir.

sexta-feira, 24 de março de 2017

Quero

Quero laços.
Tropeço sempre.
Mas ainda quero. Quero laços.
Tropeço, caio e quero.
Ser estranho, lagarto na pedra quente.
Ser só.
Sozinho.
Mas quero laços. Quero.
Desfaço, desmonto, desisto, mas quero.
Pari, criei, amei.
Compartilhei, ajudei, dei.
Apoiei, pedi, chorei.
Acompanhei, senti, vi.
Ouvi.
E ainda quero, quero laços.
Da pedra quente me lanço -
para a pedra quente eu volto,
ser estranho que sou.
Mas quero, quero sempre, quero laços.

terça-feira, 21 de março de 2017

O que sou

A identidade é a flor perdida no descampado.
O detalhe.

O que não é frágil
é o que não é o eu em mim.

terça-feira, 14 de março de 2017

Outro Anjo

Para o Matheus

O menino foi
e eu me calei.
A palavra atravessada e nunca dita
se perdeu e corre agora
no tempo já ido.
Cuidado, menino,
não corre assim,
não foge assim,
não voa não, menino,
olha pra mim.
Ele só sonhou
- voou -
sem grades
sem medos.

Não voa não, menino.

Vem, Amor,
fala por mim:
Cuidado,
não voa,
não.
Ou diz assim:
Voa, menino, voa.
E a Tua voz corre com ele.

Volta, Amor,
e consola a gente toda que ficou
sem asas.

Que voo é esse, menino,
que ninguém viu?
Que voo é esse, menino,
que de tão alto machuca assim?

Volta, Amor,
com Teu sopro que só consola.
Volta, Amor,
e põe o sonho do menino no peito de quem só chora.


domingo, 12 de fevereiro de 2017

Maria

A luz no quintal
entre cinza e prata
com lua e folhas
me cobriu.
Tua língua
feita de fogo
me penetrou
e enxertou em mim
a Tua seiva.
Enquanto Teu fruto cresce
sorvo os Teus sinais
e me embriago de Ti.
Fui feita cálice.

segunda-feira, 23 de janeiro de 2017

Inversão

Sofro de um buraco antigo.
Preenchi com comida
com leitura
com trabalho
com memória.
Mas o buraco é perene.
Agora só limpo e cuido:
me encontro
onde antes me escondia.

quinta-feira, 19 de janeiro de 2017

Plantação

O chão é árido.
Roço meus pés insistentemente
até a terra avermelhar.
Meto a mão sem dó -
cavo o buraco.
Ponho a semente e cuspo em cima.
Arrasto a terra de volta.
Trago água na bacia.
E sento.
Olho.
Espero.
Um dia brota.

sexta-feira, 6 de janeiro de 2017

O rastro

Do corpo inadequado
de repente emana
o cheiro ocre da terra molhada -
o cheiro mais amado.
A mulher se levanta
e aspira com força o cheiro todo
que lhe convém.
Cada célula se excita.
Cada átomo quer
e busca.
A mulher caminha.
Com o corpo inadequado, caminha.
No rastro que deixa,
só pungências.

quarta-feira, 4 de janeiro de 2017

Sobre a beleza

A flor desponta
e nada faz além de ser.
Elogiá-la não é o caso.