quarta-feira, 23 de junho de 2010

Pausa

A vida manda bilhetes, cheia de sinais. Quase já acredito.
É só acreditar, e ando mais devagar, sem me importar com a velocidade dos carros, ouvindo o sentido das coisas, do próximo instante. Próximo tão vasto que às vezes é menos que um suspiro, às vezes é bruto, explícito movimento.
Normalmente ando sem ritmo, ofegando com pressa. Se relaxo, transbordo, suada, e perco o centro de mim. Cambalhota. Depois fico alegre, rindo boba das desgraças todas.
Acho a vida engraçada. Quando falo de mim, quase sempre falo rindo. Acho minha vida engraçada. Vivo momentos de profundidade infinita, de compaixão enorme por toda gente: comunhão. Outras vezes, sou só amenidades. Agora, escrevendo séria sobre o mais sério em mim, prevejo um pedaço de mim que voa e calcula: será que vou conseguir encher as páginas todas de um livro? Fútil, sonho ver meu nome impresso na capa linda de um livro. Só pra ver minha escrita existindo, enfim.
Quisera eu ser um livro acabado, pronto, história cumprida. Ver o limite de mim, que belo. Tenho pressa de viver. De morrer?
Ser um livro pronto para alguém ler.
Posso vestir uma máscara mortuária e esperar pelos convidados. Gostaria de estar viva em meu enterro: só assim me leria.
Das mentiras que ando dizendo essa foi a maior. Quero morrer não, ainda quase nem nasci. Quando me sentir nascer completamente, já pressentirei a sombra dela, a Danada. Por enquanto, só expansão. Se desconfio da queda, saio rindo, engraçando tudo.
Era disso que queria falar: ressurreição. Mal me fixo no que quero. Palavra sobre palavra, vendaval. Perdoa se não consigo dizer a que venho.

(Meados dos anos 90)

terça-feira, 15 de junho de 2010

Descanso

Estou deitada num campo de flores
as folhas me tocam o rosto suavemente
o azul do céu me acaricia a alma.
Estou deitada em descanso
e sei:
meu amor me vela de longe.

(Junho de 2010)

sexta-feira, 11 de junho de 2010

Desterro - trecho II

Era domingo de tarde e Lívia estava fechada no quarto desde cedo, sem querer conversa, sem querer até sentar-se na porta de casa com o pai e os meninos. Estava guardando seus segredos. Guardando novos e relendo os que já estavam na caixinha. Eram inúmeros pedacinhos de papel com suas vontades recolhidas pelo medo de seus pais. Ela sabia, ela entendia, tinham medo de que ela se machucasse. Mas eles não viam que machucada ela já estava? A dor era a imensidão daqueles pequenos desejos, era a caixinha abarrotada, já difícil de fechar.
Os bilhetes diziam coisas assim: subir no muro com a menina da casa ao lado e ver o velhinho que mora nos fundos cantar sua música de igreja que já me cansei de só escutar; ir todas as manhãs à pracinha ver as crianças do bairro; andar bem devagar na volta da escola, parando para conversar com as amigas; ter muitas amigas; trazer as amigas para conversar de porta fechada no quarto; brincar de pegador na rua; entrar naquele terreno da casa caída; perguntar para alguém que sabe por que derrubaram a casa; não ter medo da escola e nem do pai; subir na árvore da casa da vizinha...
Lívia lia e relia diversas vezes tudo que tinha escrito. Sua letra estava ficando cada vez mais bonita, a professora elogiava. Lívia sorria olhando a própria letra. Era bom escrever sobre o que queria fazer e não podia. Mas melhor seria fazer. Então o coração se contraía de novo. Lívia então, com muito cuidado, cortava mais pedacinhos de papel e continuava a anotar: participar da aula de dança da igreja; jogar futebol, pelo menos uma vez; sair com Luzia à noite; não precisar rezar só porque a mãe mandava; poder descobrir um jeito diferente de rezar; sair de casa sozinha e correr, correr, correr, até parar cansada e se sentar em qualquer beco; aceitar um copo d’água se alguém lhe oferecesse...
As mãos desacostumadas à escrita se tornavam logo doloridas e Lívia parava outra vez, agora mal contendo a sufocação que a maltratava por dentro.
Os olhos, como poças d’água que não eram nunca pisadas por ninguém, intocadas, se perdiam por entre as ranhuras das paredes. Lívia, sem pensar, continuava a remexer os papéis, arrumando e rearrumando, dando um jeito de fechar a caixinha bem fechada, para que ninguém visse, para que nenhum desejo se perdesse. Ficou ainda muito tempo como estava, sentada na beirada da cama, a caixinha no colo, as mãos pousadas sobre a caixinha pesadamente, quase fazendo doer as pernas, a cabeça levemente tombada para frente. Sozinha no quarto.
Na porta da casa o pai descansava com os meninos. Luzia estava na casa da vizinha, que era o único lugar onde Bastião a deixava ir sozinha sem preocupação. Maria, na cozinha, fazia bolo para o lanche. Pai, vamos para o campinho? Quem perguntava era Diogo, o menino do meio. O pai ficou olhando os cinco meninos, Manoel, quase homem, Jonas, quase rapaz, Diogo, José e Pedrinho, meninos ainda, todos esperando dele alguma coisa, todos iam ser homens como ele era, e poderiam até ser mais fortes do que ele, e poderiam ir um dia embora e até ter raiva dos cuidados dele, mas era assim que era, filho seu, enquanto precisasse dele, não sairia por aí feito bandido não, tinha que viver ali pertinho, respeitando suas regras. Depois Bastião se lembrou de quando era menino no interior e da liberdade que tinha de sair e voltar quando quisesse e das partidas de futebol que não acabavam nunca e das meninas que vinham ver os jogos e dos primeiros namoros e das irmãs que também tinham liberdade de brincar e passear na rua, e quase então entendeu a tristeza de Lívia. Olhou de novo os meninos, Diogo insistindo no pedido, os outros concordando e esperando a resposta. Zé, vai lá chamar sua irmã, ela vai também. Os meninos se olharam escondendo o sorriso, nem se importando de terem que levar Lívia. Mas logo Zé voltou lá de dentro com jeito estranho, Pai, ela disse que não quer sair não. E agora se olharam de novo com susto, só podia ser doença. Bastião foi até o quarto da menina, filha, tá doente, por que não quer sair? Quero não, pai, mas não é doença não. Bastião teve vontade de bater na menina, que não era possível ser tão complicada assim, pois não vivia pedindo para sair e agora que vinha chamar não queria, o que essa menina tem que ninguém entende? Viu então o porta-jóias no colo de Lívia e o tomou em suas mãos, o que é que você tem aqui dentro, aquele safado andou te dando mais presente? O pai agora gritava furioso, deixando Lívia assustada e com medo de perder seus segredos, é nada não, pai, só uns papéis. Que papéis? andou mandando bilhetes então, o que ele quer de você, não vê que você é criança ainda, não vê que você tem pai, aquele cachorro se fingindo de amigo... Não, pai, são só uns papéis, eu é que escrevi neles. Bastião começou a ler e ainda não entendia, que seria aquilo, seriam planos, encontros, não, pai, são só coisas que eu tinha vontade de fazer. Então Bastião de repente entendeu e se lembrou de novo de Carmem e as outras irmãs brincando sem medo pelas ruas e o campo de futebol sempre cheio de meninos e as meninas olhando e às vezes até jogando, e as meninas pulando corda e cantando em roda e a mãe de vez em quando vindo olhar sem susto, só orgulhosa dos meninos todos, ou cansada do serviço que não tinha fim. Mas tudo isso passou muito rápido pela cabeça do pai que não se cansava de ser pai e o que tinha entendido de repente se desfez e começou a gritar outra vez, agora com mais raiva ainda e a raiva era mais da vida desgraçada que era obrigado a levar e que era a única que podia dar a seus filhos, pára de tanta besteira, menina, te falta alguma coisa nessa casa, já sentiu o estômago doer de fome, já ficou sem poder ir à escola, já ficou doente sem ter alguém para cuidar de você?, pára de tanta besteira se não quiser apanhar de novo, que a vontade que eu tenho é de te ensinar à força que a vida é pedra e luta e que você tinha era que agradecer em vez de ficar enfiada neste quarto escrevendo besteira; sai, sai daqui agora, vai para a cozinha ajudar sua mãe, sai. Lívia não saiu do lugar, olhava para o pai aterrorizada, incapaz de se mover. Maria, Maria, vem tirar esta menina daqui, some com esta menina daqui antes que eu acabe com ela. Maria pegou Lívia nos braços e a levou para a cozinha. Sentou com a menina no chão e tentava acalmá-la, ainda ouvindo os gritos de Bastião e os murros que dava na parede, tentando fazer sair a raiva. Os meninos todos assistiam a tudo calados. Luzia escutara os gritos e estava de novo em casa, com Pedrinho no colo.
Na cozinha, Lívia agora em prantos, encolhia-se no colo da mãe que a apertava contra seu próprio corpo, quase querendo que ela fosse parte de sua carne outra vez. No quarto, Bastião rasgou os papéis e quebrou o porta-jóias.


(Trecho do romance Desterro, publicado pela Editora Manuscritos, em 2010. À venda na Livraria Café Book, à Rua Padre Rolim, 616, Belo Horizonte - (31)3224 5748)

quarta-feira, 9 de junho de 2010

Vidraça

Chove.
É água, é linda, e linda
escorre em mim.
Me dano, me canso, me peno
de tanto ser,
derretendo em corrimentos.
Feito mulher, eu, mulher que sou.
Chuva doida!

(Início dos anos 90)

quarta-feira, 2 de junho de 2010

Minha pequena cosmologia

Meu corpo e minha alma, unidos indissoluvelmente, formam o que sou. O corpo é fruto dos movimentos da matéria. A alma é fruto dos movimentos das energias sutis do universo. Unidos em mim, me determinam como um ser único. Com a morte, há a separação, o fim da vida é o fim da união, é o fim do que sou. O corpo retorna à terra, realimentando as forças brutas que o criaram. A alma retorna ao universo, realimentando as energias sutis que a criaram. Mas nem um nem outro sou eu mais.
Enquanto vivo, tenho vida mais plena se mais me aproximo da terra e do universo. Pelo corpo sinto as ondas da terra, do mar, do ar e do fogo – e com elas aprendo, e com elas vivo mais intensa e mais bruta e mais selvagem. Pela alma, sinto o sopro divino que anuncia o amor – e com ele aprendo, e com ele vivo mais simples e mais volátil, mais sabedora das sutilezas que cercam o vivido. Pelo corpo e pela alma me aproximo da felicidade suprema de saber-me unida àquilo que me criou.

(Setembro de 2009)