segunda-feira, 28 de março de 2011

O doce e o sal

Quando um dia ouvi um sussurro da vida, e o que ela me mostrava era o seu oposto, tive raiva. Mas minha raiva era nada diante da realidade bruta. E foi esperneando feito criança mimada que me conformei. E a sombra da morte passou a ser a companheira inevitável de todos os dias – e sob esta sombra, as cores do mundo se fizeram mais nítidas, e a beleza mais pungente, como o doce que é ressaltado pela pitada de sal.

(Março de 2011)

quarta-feira, 23 de março de 2011

Diário de uma mulher não moderna I

A mulher moderna tem muitas faces. Concilia o trabalho, o amor e a família, sem se descuidar da própria beleza. Todas as faces se ajudam mutuamente, e nenhuma delas prejudica as outras.
Foi pensando sobre isso que descobri que não sou moderna.
Não consigo me lembrar de todos os cuidados exigidos pelos salões de beleza. Mas tento preservar o brilho dos olhos.
Não construí ainda uma carreira bem sucedida, e já passo dos quarenta. Psicóloga sem clientela, professora de filosofia com poucos alunos, escritora com poucos leitores, tradutora iniciante.
Mas tenho filhas que vêm crescendo ao meu lado, e são alegres e tranquilas. E tenho um amor que me faz feliz. E quando temos problemas, temos tempo para sentar e conversar, eu e elas, eu e ele.
Nada conciliado: Criar filhas atrapalhou minha carreira, e de estudante brilhante passei a profissional sempre iniciante. Quando trabalho, sofro a distância das filhas. E os dias passam, e não estou desocupada e a vida corre e o tempo é sempre belo.
Me ocupo muito no entendimento das coisas e até já sei: É bom não ser moderna.

(Março de 2011)

segunda-feira, 21 de março de 2011

Abismo

Aos quinze anos escrevi: “há um abismo entre mim e o mundo”. Décadas mais tarde, me vi nos braços da alegria de estar viva em um mundo tão bonito. E agora, já entrevendo a velhice que me lança seus primeiríssimos sinais, reencontro o abismo.
Me lanço e sei que penetro a fresta por onde encontrarei meu jeito próprio de caminhar: um jeito manco que não me impede a marcha.

(Março de 2011)

sexta-feira, 4 de março de 2011

Discrição

chove bem manso
penso em você bem calma
quase nem faço barulho
quando ando pela vida

(Março de 2011)