sexta-feira, 24 de dezembro de 2010
Natal
E é quando pressinto a chegada suave desse amor, que posso dizer: hoje é natal.
(Natal de 2010)
quarta-feira, 15 de dezembro de 2010
O pote de ouro
Quando era quase moça, decidiu que era a hora de aceitar o que era seu, pois o pote continuava lá, ninguém jamais havia tocado nele. Era que, sendo dela, só ela poderia se servir dele e, portanto, não tomá-lo para si seria o mesmo que transformá-lo em lixo. E ela soube que não devia deixar virar lixo uma dádiva tão preciosa.
Porém, quando aprendia aos poucos a se servir do pote, perdeu seu pai, e sentiu-se triste e culpada, e encheu-se de raiva, e desgostou-se do que era seu, pois não tinha dado a ela nenhuma sorte. Seguiu na vida sem o pote, e sofreu. Sofreu perdas, dores, e, sobretudo, sofreu um imenso vazio que fazia com que não se reconhecesse em nada em seu reino tão grande.
Longos anos se passaram. E ela um dia encontrou um homem que a olhou com amor. E a convidou para um passeio, e depois para um descanso, e depois para a vida toda juntos. Mas ela teve medo de aceitar e disse a ele que não podia, porque trazia no peito uma tristeza e um vazio que nunca a deixariam ser feliz. E contou a ele que tinha nascido com um pote de ouro. E ele disse:
– Para que serve o ouro do seu pote?
E como ela não respondeu, porque pensava que todo ouro era um só, e só servia para juntar riqueza, ele continuou:
– Acho que seu ouro é o que te falta no buraco do coração. É o que vai fazer você ser o que você é.
E então foram juntos procurar o pote, escondido no fundo de um armário antigo. E quando a menina, agora mulher, deixou cair no chão, pela primeira vez, todo o conteúdo do pote, viu a casa toda se iluminar pelo brilho das moedas. E seu coração foi preenchido pela luz, assim como o corpo se preenche com o pão.
E a mulher e o homem caminharam juntos de mãos dadas, e a luz do pote de ouro brilhava intensa nos olhos da mulher, e ela pôde enfim entender que agora poderia dar ao mundo aquilo que antes era só seu. Tendo tomado para si o que era seu, podia agora doar.
E o homem, então, falou outra vez:
– Agora que a luz do ouro que era seu já vive em seus olhos, você já pode se desfazer dele.
Ela sorriu e foi buscar o pote.
O dia já ia longe, e as trevas da noite já se anunciavam. A mulher e o homem andaram em direção à noite. Andaram até que a escuridão se fizesse completa. E então a mulher abriu o pote e jogou com força todo o ouro em direção ao céu. E cada moeda atingiu uma distância imensa.
E a noite não era mais a total escuridão: tinham nascido as estrelas.
(Junho de 2010. Texto escrito para o concurso de Lendas de Tânia Diniz, no qual recebeu o título de "Destaque" - o resultado do concurso você pode encontrar no Blog da Tânia, Mulheres Emergentes: http://www.mulheresemergentes.com/.)
sábado, 11 de dezembro de 2010
Eu e as folhas
deus, me dá um jeito de viver com calma
me dá doçura a cada dor sofrida
me dá paciência a cada desalento
e leveza para o perdão –
me faz mais simples
a cada dia
e faz crescer em mim os laços
que me unem a tudo o que me cerca
natureza pessoas universo
mas não rezo
porque meu pedido seria menos
do que o tremor suave das folhas mais leves
(Dezembro de 2010)
quinta-feira, 9 de dezembro de 2010
Amanhecer
mansa e leve
como se me fizessem cócegas na alma
(Dezembro de 2010)
domingo, 5 de dezembro de 2010
A morte do desejo
agora sou um filete de água
de sangue
de dor
eu, que antes fui um impulso
agora, dilacerada,
sangro
e grito:
e o que grito não se ouve
porque explode em um silêncio surdo
que me comprime por dentro
e me revela na língua retorcida
que não sabe mais o caminho da palavra
eu, que já fui um impulso
agora sou voz miúda e sedenta
e o que me sacia a sede
é o mistério que corre em cada seiva
em cada fragmento de coisa viva
e não viva
que respira para além de mim
e o que grita minha voz surda
é só o desejo passado
que ainda ousa –
depois de ter sido morto
eu, que já fui desejo
agora sou árvore fincada na terra
florescendo,
bela,
enraizada naquilo que a vida me oferece
(Dezembro de 2010)
sexta-feira, 26 de novembro de 2010
Sem rodeios
Não basta isso para entender o que é a beleza da vida?
(Novembro de 2010)
quarta-feira, 24 de novembro de 2010
A menina-vendaval
Um dia vi uma menina nascer. Tinha olhos tão firmes, que um dia até me assustaram, e ainda nem tinha parado de mamar. Tinha um corpo tão forte, que se pôs de pé antes da hora. Tinha uma força de vida tão grande, que corria quando fez um ano. E sorria, e quando sorria alegrava o mundo todo. Eu olhava, e ria junto. O pai dela olhava, e ria junto. E eu sentia tanto orgulho que me deixava levar, feliz, pela vida que era dela. Quando andava, corria. Quando falava, tropeçava nas palavras. Quando brincava, era um vendaval. Quando precisava ficar quieta, era uma dificuldade. Nunca ficava sozinha, de tão cheia de amigos que sempre foi. Mas um dia, sozinha no quarto, cheguei preocupada perguntando se estava triste – e ela respondeu: estou pensando. Ah, a menina estava crescendo. Agora, além de pensar, sei que ela também chora sozinha. E nem sempre posso ver. E olho para ela, e lá estão os mesmos olhos, a mesma força, a mesma inquietude. A menina corre para o mundo e não entende tudo o que vê. Mas a menina ama o mundo. E quer correr e alcançar. Corre tanto que deixa coisas pelo caminho. Até me deixa nervosa.
Mas queria só conseguir que ela escutasse: eu continuo toda grande, de tanto orgulho da menina-vendaval que deixa coisas pelo caminho. Porque, por onde ela passa, o mundo todo sorri.
(Novembro de 2010)
Sobrevida
me inquieta e me desperta para a vida
que é mais sutil do que esta que
um dia não terei mais
a vida pequena não morre –
passa de um ser a outro
de um tempo a outro
e nós, que nos julgamos grandes,
morreremos sem saber se algum pedaço
– um pedacinho qualquer –
de tudo o que fomos,
permanecerá
para além de nós
porque o que é único não sobrevive naquilo que é diferente de si
(Novembro de 2010)
sexta-feira, 19 de novembro de 2010
Fragmento de coisa
Sim, agora sei:
o monstro é o desejo.
Perdida,
o olho sem medo
sem luta
e espero.
O monstro-desejo
me toma.
Tomada,
me sento com as palmas das mãos voltadas para o céu
e choro.
Só da natureza vem o consolo.
E o consolo é ser como todas as coisas:
simples folha lançada ao vento
correndo ao sabor de forças
que são enigmas
que são perenes
que estão na infinita distância
daquilo que não posso tocar
com minhas mãos
que são feitas de terra.
(Novembro de 2010)
quarta-feira, 17 de novembro de 2010
Poesia auto centrada
E a quem pode interessar os versos que faço sobre mim?
Ah, bem sei que a ninguém além daqueles que se interessam por mim.
A não ser que o que falo de mim seja maior do que eu mesma.
A não ser que o que falo de mim seja uma mistura de verdades e mentiras
sobre o que sou, o que penso que sou, o que queria ser, o que nem chego a ser.
A não ser que os versos que faço sobre mim sejam só um jeito torto
de tentar dizer sobre tudo o que vejo quando abro os olhos ao amanhecer –
e o que vejo é sempre marcado pela tonalidade da luz dos meus olhos,
que, por sua vez, são marcados pela luz que me vem de fora.
(Novembro de 2010)
domingo, 14 de novembro de 2010
Nascimento
Vi nascer o sofrimento moral que é o que marca, para sempre, um ser humano que ama.
(Novembro de 2010)
domingo, 7 de novembro de 2010
Pequeno esboço de memória
(as coisas não vão dar certo o que faço é sempre errado as coisas não vão dar certo)
pequenos pensamentos perversos me vêm da infância que persiste
(sou o centro das coisas do mundo que não dá certo sou o centro do mundo das coisas que não dão certo sou o centro)
pequenos pensamentos que me adoecem de medo
me vêm da infância que se confunde
comigo
e o que sou se envereda nas coisas do mundo
e o mundo se envereda em mim com suas imagens
que são minha memória
e faço versos que são textos
e textos que são memórias
– o que sou se enovela com o que invento ser
medo e desejo
quero tanto
e nada vai dar certo
quero tanto
e não sou capaz de nada
quero tanto
e me rasgo agora
quero tanto
medo e anseio
quero
tanto
(Novembro de 2010)
sábado, 30 de outubro de 2010
Madrugada
nem tão querida
nem tão suavemente amada
como quando ele,
em sonho,
deslizou a mão sobre meu corpo
e me trouxe à vida
para além do sonho
(Outubro de 2010)
segunda-feira, 18 de outubro de 2010
Cotidiano
E ele era pobre.
E eu não podia nada diante da vida que sangrava escancarada.
(Outubro de 2010)
domingo, 3 de outubro de 2010
Simples
e o sereno da noite cai sobre mim –
espalho as mãos abertas na grama molhada
espalho o desejo pela terra que me contém
o peito se expande e toca o cume
sou só um corpo
mas um corpo que se expande
simples
como o sereno da noite
(Outubro de 2010)
sexta-feira, 24 de setembro de 2010
terça-feira, 21 de setembro de 2010
Sobre o escrever - II
(Setembro de 2010)
sábado, 18 de setembro de 2010
Sobre o que não é bom
Cheiro bom, eu me nutria.
Mas durou pouco e veio vindo um cheiro fétido.
Me curvei para frente em rejeição e dor.
Tombei sobre meu corpo.
Quando tentaram me salvar, não cedi.
Mais tarde, de bem longe, vi brotar a vida na terra ressecada.
Caminhei devagar e pisei nas folhinhas,
pequenas, vida fugidia.
Matei todas, uma a uma,
e caminhei de volta ao ponto de partida.
E já sabia: o cheiro fétido era meu.
(Setembro de 2010)
sexta-feira, 17 de setembro de 2010
Abismo
e não me vejo mais
estou perdida de mim
ou foi do mundo que me perdi
olho para os lados e não me encontro mais
talvez foi o mundo que se desfez
em imagens vazias
e eu corro ainda
e procuro uma vida
uma alma qualquer –
as poucas que vejo
sofrem com meu olhar de gula
e eu mesma temo
temo a mim
e ao que não se reconhece no mundo
(Setembro de 2010)
sexta-feira, 10 de setembro de 2010
Natureza
e eu junto no pulsar do mundo –
o que eu sou
faz parte da mesma massa inerte que compõe o que existe
em círculo, o morto e o vivo se combinam
se enovelam
e se revelam nas células mortas que se soltam da minha pele
com elas, se esvai a última certeza
e entre a vida e seu contrário
eu mesma me enovelo em círculo
(Setembro de 2010)
sábado, 28 de agosto de 2010
Quase
E a beleza disso tudo é tão pequenina. Mas é também tão vasta, meu deus, que é quase o bastante para uma vida inteira.
(Agosto de 2010)
segunda-feira, 23 de agosto de 2010
sexta-feira, 6 de agosto de 2010
Águas
O interior do meu corpo é recheado de cores, sombras e calores. Quando sinto medo, chamo de frio. Quando sinto desejo, é fogo, calor que trepida. A tristeza é sombra e aridez, vento seco que corta tudo por dentro. Mas essa alegria de hoje é só um calor manso, como mergulhar em águas quentes. Gostoso e sufocante.
Nado pelas águas mornas, e as águas de dentro se misturam às de fora.
Lancei minha alegria para fora, e assim invadi o mundo. Ou foi o mundo que me invadiu com sua alegria mansa...
(Agosto de 2010)
domingo, 1 de agosto de 2010
sábado, 10 de julho de 2010
Menina-lagarta
Ah, a menina olha os pés e os pássaros que chegam perto. Peixinhos fazem cócegas. O pé e os peixinhos. A natureza.
E ela sabe: sou natureza.
A menina, feita natureza, descansa.
E no descanso sorri, e o sorriso se comunica com o mundo. O mundo inteiro é natureza que sorri.
A menina é bicho, e o bicho rola na terra tenra. Os pés ainda molhados se secam na brincadeira de rolar e cair e descansar. O corpo e o mundo.
A menina dança enquanto o corpo e a terra se misturam.
Menina-lagarta. Menina-lagarta coberta de terra. Terra que cobre a menina-lagarta.
E eu sei: eu e o pó somos uma coisa só.
(Julho de 2010)
segunda-feira, 5 de julho de 2010
O girassol
é como uma vida a desejar o mar -
e o mar é a fonte do amor
e o amor é o que o girassol recebe.
(Julho de 2010)
quarta-feira, 23 de junho de 2010
Pausa
É só acreditar, e ando mais devagar, sem me importar com a velocidade dos carros, ouvindo o sentido das coisas, do próximo instante. Próximo tão vasto que às vezes é menos que um suspiro, às vezes é bruto, explícito movimento.
Normalmente ando sem ritmo, ofegando com pressa. Se relaxo, transbordo, suada, e perco o centro de mim. Cambalhota. Depois fico alegre, rindo boba das desgraças todas.
Acho a vida engraçada. Quando falo de mim, quase sempre falo rindo. Acho minha vida engraçada. Vivo momentos de profundidade infinita, de compaixão enorme por toda gente: comunhão. Outras vezes, sou só amenidades. Agora, escrevendo séria sobre o mais sério em mim, prevejo um pedaço de mim que voa e calcula: será que vou conseguir encher as páginas todas de um livro? Fútil, sonho ver meu nome impresso na capa linda de um livro. Só pra ver minha escrita existindo, enfim.
Quisera eu ser um livro acabado, pronto, história cumprida. Ver o limite de mim, que belo. Tenho pressa de viver. De morrer?
Ser um livro pronto para alguém ler.
Posso vestir uma máscara mortuária e esperar pelos convidados. Gostaria de estar viva em meu enterro: só assim me leria.
Das mentiras que ando dizendo essa foi a maior. Quero morrer não, ainda quase nem nasci. Quando me sentir nascer completamente, já pressentirei a sombra dela, a Danada. Por enquanto, só expansão. Se desconfio da queda, saio rindo, engraçando tudo.
Era disso que queria falar: ressurreição. Mal me fixo no que quero. Palavra sobre palavra, vendaval. Perdoa se não consigo dizer a que venho.
(Meados dos anos 90)
terça-feira, 15 de junho de 2010
Descanso
as folhas me tocam o rosto suavemente
o azul do céu me acaricia a alma.
Estou deitada em descanso
e sei:
meu amor me vela de longe.
(Junho de 2010)
sexta-feira, 11 de junho de 2010
Desterro - trecho II
Os bilhetes diziam coisas assim: subir no muro com a menina da casa ao lado e ver o velhinho que mora nos fundos cantar sua música de igreja que já me cansei de só escutar; ir todas as manhãs à pracinha ver as crianças do bairro; andar bem devagar na volta da escola, parando para conversar com as amigas; ter muitas amigas; trazer as amigas para conversar de porta fechada no quarto; brincar de pegador na rua; entrar naquele terreno da casa caída; perguntar para alguém que sabe por que derrubaram a casa; não ter medo da escola e nem do pai; subir na árvore da casa da vizinha...
Lívia lia e relia diversas vezes tudo que tinha escrito. Sua letra estava ficando cada vez mais bonita, a professora elogiava. Lívia sorria olhando a própria letra. Era bom escrever sobre o que queria fazer e não podia. Mas melhor seria fazer. Então o coração se contraía de novo. Lívia então, com muito cuidado, cortava mais pedacinhos de papel e continuava a anotar: participar da aula de dança da igreja; jogar futebol, pelo menos uma vez; sair com Luzia à noite; não precisar rezar só porque a mãe mandava; poder descobrir um jeito diferente de rezar; sair de casa sozinha e correr, correr, correr, até parar cansada e se sentar em qualquer beco; aceitar um copo d’água se alguém lhe oferecesse...
As mãos desacostumadas à escrita se tornavam logo doloridas e Lívia parava outra vez, agora mal contendo a sufocação que a maltratava por dentro.
Os olhos, como poças d’água que não eram nunca pisadas por ninguém, intocadas, se perdiam por entre as ranhuras das paredes. Lívia, sem pensar, continuava a remexer os papéis, arrumando e rearrumando, dando um jeito de fechar a caixinha bem fechada, para que ninguém visse, para que nenhum desejo se perdesse. Ficou ainda muito tempo como estava, sentada na beirada da cama, a caixinha no colo, as mãos pousadas sobre a caixinha pesadamente, quase fazendo doer as pernas, a cabeça levemente tombada para frente. Sozinha no quarto.
Na porta da casa o pai descansava com os meninos. Luzia estava na casa da vizinha, que era o único lugar onde Bastião a deixava ir sozinha sem preocupação. Maria, na cozinha, fazia bolo para o lanche. Pai, vamos para o campinho? Quem perguntava era Diogo, o menino do meio. O pai ficou olhando os cinco meninos, Manoel, quase homem, Jonas, quase rapaz, Diogo, José e Pedrinho, meninos ainda, todos esperando dele alguma coisa, todos iam ser homens como ele era, e poderiam até ser mais fortes do que ele, e poderiam ir um dia embora e até ter raiva dos cuidados dele, mas era assim que era, filho seu, enquanto precisasse dele, não sairia por aí feito bandido não, tinha que viver ali pertinho, respeitando suas regras. Depois Bastião se lembrou de quando era menino no interior e da liberdade que tinha de sair e voltar quando quisesse e das partidas de futebol que não acabavam nunca e das meninas que vinham ver os jogos e dos primeiros namoros e das irmãs que também tinham liberdade de brincar e passear na rua, e quase então entendeu a tristeza de Lívia. Olhou de novo os meninos, Diogo insistindo no pedido, os outros concordando e esperando a resposta. Zé, vai lá chamar sua irmã, ela vai também. Os meninos se olharam escondendo o sorriso, nem se importando de terem que levar Lívia. Mas logo Zé voltou lá de dentro com jeito estranho, Pai, ela disse que não quer sair não. E agora se olharam de novo com susto, só podia ser doença. Bastião foi até o quarto da menina, filha, tá doente, por que não quer sair? Quero não, pai, mas não é doença não. Bastião teve vontade de bater na menina, que não era possível ser tão complicada assim, pois não vivia pedindo para sair e agora que vinha chamar não queria, o que essa menina tem que ninguém entende? Viu então o porta-jóias no colo de Lívia e o tomou em suas mãos, o que é que você tem aqui dentro, aquele safado andou te dando mais presente? O pai agora gritava furioso, deixando Lívia assustada e com medo de perder seus segredos, é nada não, pai, só uns papéis. Que papéis? andou mandando bilhetes então, o que ele quer de você, não vê que você é criança ainda, não vê que você tem pai, aquele cachorro se fingindo de amigo... Não, pai, são só uns papéis, eu é que escrevi neles. Bastião começou a ler e ainda não entendia, que seria aquilo, seriam planos, encontros, não, pai, são só coisas que eu tinha vontade de fazer. Então Bastião de repente entendeu e se lembrou de novo de Carmem e as outras irmãs brincando sem medo pelas ruas e o campo de futebol sempre cheio de meninos e as meninas olhando e às vezes até jogando, e as meninas pulando corda e cantando em roda e a mãe de vez em quando vindo olhar sem susto, só orgulhosa dos meninos todos, ou cansada do serviço que não tinha fim. Mas tudo isso passou muito rápido pela cabeça do pai que não se cansava de ser pai e o que tinha entendido de repente se desfez e começou a gritar outra vez, agora com mais raiva ainda e a raiva era mais da vida desgraçada que era obrigado a levar e que era a única que podia dar a seus filhos, pára de tanta besteira, menina, te falta alguma coisa nessa casa, já sentiu o estômago doer de fome, já ficou sem poder ir à escola, já ficou doente sem ter alguém para cuidar de você?, pára de tanta besteira se não quiser apanhar de novo, que a vontade que eu tenho é de te ensinar à força que a vida é pedra e luta e que você tinha era que agradecer em vez de ficar enfiada neste quarto escrevendo besteira; sai, sai daqui agora, vai para a cozinha ajudar sua mãe, sai. Lívia não saiu do lugar, olhava para o pai aterrorizada, incapaz de se mover. Maria, Maria, vem tirar esta menina daqui, some com esta menina daqui antes que eu acabe com ela. Maria pegou Lívia nos braços e a levou para a cozinha. Sentou com a menina no chão e tentava acalmá-la, ainda ouvindo os gritos de Bastião e os murros que dava na parede, tentando fazer sair a raiva. Os meninos todos assistiam a tudo calados. Luzia escutara os gritos e estava de novo em casa, com Pedrinho no colo.
Na cozinha, Lívia agora em prantos, encolhia-se no colo da mãe que a apertava contra seu próprio corpo, quase querendo que ela fosse parte de sua carne outra vez. No quarto, Bastião rasgou os papéis e quebrou o porta-jóias.
(Trecho do romance Desterro, publicado pela Editora Manuscritos, em 2010. À venda na Livraria Café Book, à Rua Padre Rolim, 616, Belo Horizonte - (31)3224 5748)
quarta-feira, 9 de junho de 2010
Vidraça
É água, é linda, e linda
escorre em mim.
Me dano, me canso, me peno
de tanto ser,
derretendo em corrimentos.
Feito mulher, eu, mulher que sou.
Chuva doida!
(Início dos anos 90)
quarta-feira, 2 de junho de 2010
Minha pequena cosmologia
Enquanto vivo, tenho vida mais plena se mais me aproximo da terra e do universo. Pelo corpo sinto as ondas da terra, do mar, do ar e do fogo – e com elas aprendo, e com elas vivo mais intensa e mais bruta e mais selvagem. Pela alma, sinto o sopro divino que anuncia o amor – e com ele aprendo, e com ele vivo mais simples e mais volátil, mais sabedora das sutilezas que cercam o vivido. Pelo corpo e pela alma me aproximo da felicidade suprema de saber-me unida àquilo que me criou.
(Setembro de 2009)
domingo, 30 de maio de 2010
O dia da noiva
– Oi, como é seu nome?
– Julieta.
– Oi, Julieta. Você todo dia limpa a sala onde venho estudar e eu nunca tinha te perguntado o nome. É estranho, não é, Julieta? Meu nome é João, estudo História, você sabe o que é História? Se quiser, te explico.
– Precisa não senhor, obrigada, viu, mas precisa não senhor.
– Então bom dia, Julieta. Obrigada pela limpeza da sala.
– Bom dia, tem que agradecer não, faço meu serviço.
Era um moço como os outros, mas tinha falado com ela e desde aquele dia não tinha aparecido mais. Julieta queria ver o João de novo, pelo menos assim ia falar com alguém, que as colegas de serviço já nem falavam com ela, diziam que era esquisita demais. Julieta era isso, esquisita e calada, mas desejosa de falar. Falar com alguém que quisesse saber dela, e explicar coisas do mundo. Queria, sim, João, saber o que é a História, mas fiquei foi avexada, disse que precisava não, mas agora quero, quero sim, e o João não volta.
Que foi feito do João que não vem mais para as aulas? Era isso o que Julieta pensava enquanto o ônibus rodava livre no trânsito fácil do início da manhã. Em casa tinha deixado a mãe e a tia dormindo ainda, que agora que se aposentaram não gostavam mais de acordar cedo. Julieta pensava que a vida dela era só isso, mais uma vida igual à da mãe e da tia que viveram sempre juntas, mas também muito sozinhas, que duas irmãs não podiam se fazer felizes não, bom seria ter um marido com quem conversar e sentir a vida correndo como se fosse de dois e não de um só, como eram a vida da mãe e da tia, e a dela mesma, que agora o tempo já passava para ela também e certamente ia acabar mesmo aposentada, dormindo até tarde, sem ninguém com quem gastar o tempo livre da vida sem trabalho.
Mas tinha o João que tinha percebido que ela estava lá, limpando todo dia a sala onde ele ia estudar a História. História de quê, meu Deus, que aquele menino tanto estudava? História. Julieta pensava e pensava e não conseguia entender como é que se estuda a história – história é só contar, contar para alguém escutar. Se o João quisesse, podia contar para ele a sua história: nasci por acaso da barriga de minha mãe sem saber quem é meu pai; minha mãe jura que ele morreu antes do meu nascimento e que é por isso que nunca veio me ver; duvido sempre, deve ser um malandro qualquer que minha mãe escolheu para não morrer seca como minha tia que nunca conheceu um homem; cresci sozinha com minha mãe e minha tia que perderam os pais quando eram pequenas; cresci sem brincar na rua, que duas mães é muito para uma menina só: eu não conseguia sair de debaixo dos olhos delas; cresci com minha mãe e minha tia que trabalharam muito para me sustentar e agora estão aposentadas e eu agora trabalho muito para que elas não fiquem sem os remédios. Quando era moça, ia para a escola, e era até boa aluna, mas não me lembro de nada não, que já faz muito tempo. Fiquei foi seca como minha tia, de homem nunca cheguei nem perto, que tenho medo. Fico é bem quieta vendo o tempo passar, limpando as salas e o chão e as privadas. É só isso.
Quando o ônibus finalmente parou no ponto final, do outro lado da cidade, Julieta desceu com a bolsa pesada e foi andando devagar. Dez minutos depois, cruzou o portão grande da universidade e continuou andando até o prédio onde ia passar o dia limpando. Aí viu de longe o João que chegou bem perto falando bom dia, Julieta. E pegou a bolsa que estava pesada do uniforme e da marmita já fria e foi levando para Julieta, perguntando da vida dela e contando das coisas que estudava. Ela estranhava a falta do peso da bolsa que nunca antes tinha sido carregada por outra pessoa, que Julieta nunca tinha tido quem lhe fizesse gentilezas. Foram juntos até o vestiário do pessoal da limpeza. Ele então entregou a bolsa, Julieta agradeceu, o João disse que não foi nada e seguiu para a sua sala de aula.
Julieta trabalhou o dia todo sem sentir.
Em casa, de noite, nem se cobriu. O corpo pegava fogo como corpo de noiva que acaba de se casar.
(Abril de 2008)
quinta-feira, 27 de maio de 2010
Tripé e um leve sopro
Sou uma mulher como Adélia,
rasgo minha alma como Clarice,
mas escrevo sem adornos,
como Graciliano.
E, às vezes, recebo, com paixão,
o sopro lírico do Quintana.
(Janeiro de 2010)
sexta-feira, 21 de maio de 2010
Minha pequena ética
A felicidade do diabo é a felicidade da finitude. Perpassada de angústia e inquietude. Acompanhada pelo medo da perda. Mantida com luta e empenho, se origina nas coisas do mundo e na ilusão de que delas pode provir o infinito.
A felicidade sagrada é a que não tem motivos; é ligada, pois, ao infinito, descolada, desprendida das coisas do mundo. É acordar de manhã e sorrir, e aí então todas as coisas do mundo se banham desse sorriso. A felicidade sagrada não abandona as coisas do mundo, mas também não se origina nelas.
(Fevereiro de 2010)
sábado, 15 de maio de 2010
Rosa no deserto
Com a marmita vazia no colo, Zeca olhava o campo bem longe. A terra vermelha, torrada pelo Sol que não falhava, dia após dia. A terra machucada pelo Sol. Se não fosse assim, era só plantar e viver tranqüilo com Rosa, comendo o que a terra desse. Mas a chuva não vem e a terra rachada não convida. Zeca veio então para a lavra, o dia todo abrindo buraco com explosão, olho colado na terra aberta, esperança de ver o brilho da pedra. Uma só, uma só. Esperança de pedra que não largava Zeca, que não deixava Zeca ir embora para viver longe dali com Rosa.
Com a marmita vazia e fechada no colo, Zeca pensa em Rosa. Ela não vinha mais trazer café, estava cansada daquela espera.
– Isso não é esperança mais não, homem. Isso é só espera, espera de nada.
– Cala essa boca, Rosa, que não vivo sem minha esperança não.
Rosa se calava, mas a vontade era de falar mais, vamos embora daqui, vamos ver outro lugar e trabalhar e viver com o pouquinho que a gente tiver. Rosa se trancava no quarto e falava com Deus que parecia estar longe dali. Faz esse homem desistir dessa besteira, faz ele voltar para casa e me levar embora com casamento. Faz esse homem me querer de novo. Faz...
Mas Zeca queria, queria sim, queria a Rosa e o casamento e tudo. Queria os filhos e os problemas dos filhos e o cuidado com Rosa. Mas queria antes se preparar, ter o dinheiro que precisava. Parava de pensar e guardava a marmita, com os companheiros já voltando para a lida. Garimpar era passar o dia com terra nas mãos, triturar cada torrão de terra na esperança de encontrar a dureza da pedra. Explodir e fazer buraco, olhar cada canto depois da explosão. Passar a mão na terra, passar a mão em Rosa. Zeca machucava as mãos cada vez mais duras para o corpo de Rosa. Corpo de Rosa cada vez mais doído pela espera de Zeca. Mãos de Rosa que passavam por seu próprio corpo sonhando com as mãos de Zeca cada vez mais raras. Mãos de Rosa que tocavam seu rosto desenhando a tristeza de esperar sem esperança.
No final do dia, Zeca voltava para casa sozinho. Não dormia no garimpo com os outros, sua casa era perto, caminhada de hora e meia. Hora e meia sob o céu escuro, pensando na pedra que não vinha e na espera de Rosa que quase morria. Quando se deitava na cama depois do banho gelado, o corpo doído pelo trabalho e pela caminhada, se apagava antes de todo pensamento. Quando Rosa vinha de surpresa e encontrava o corpo de Zeca dormindo, se deitava ao lado dele e não dormia. Velava o sono de Zeca que era pesado como o peso de seu corpo. Velava sem sono o sono de Zeca que era duro como suas mãos cansadas de alisar a terra rachada. Rosa tomava em suas mãos as mãos do homem que dormia e sentia que as suas também não eram macias e que o trabalho era ferida para o corpo.
Rosa acabava adormecendo com a mão de Zeca entre as suas e quando acordavam o dia quase amanhecia e ele logo se preparava para caminhar de volta para o garimpo onde passaria o dia na esperança renovada pelo sono bendito.
– Vai hoje não, homem, fica aqui comigo. Só hoje.
– Mas minha Rosa, e se for hoje o dia de encontrar? Uma pedrinha só, Rosinha, é o que nós precisamos para ir embora daqui e fazer nossa vida e nossa família...
– E nossos filhos e nossa casa e nossos móveis... Já sei, Zeca, já sei de tudo. Mas quero mais não, quero mais essa espera não.
E Zeca olhava para ela quase com raiva e ia embora com o pão na mão, deixando Rosa sozinha com o café no fogo, olhando da porta da casa o homem caminhando sem olhar para trás, levantando poeira na terra vermelha.
Até que um dia Rosa voltou para a casa onde vivia com a mãe velha e as irmãs solteiras e arrumou as coisas todas que tinha.
– Vai onde, Rosa? Zeca resolveu largar do garimpo?
– É não, mãe. Vou embora sozinha. E é hoje.
– Rosa, mulher sozinha na estrada é mulher vadia. Você não pode não.
– Pois vou, mãe, e se tiver que ser vadia, vou ser vadia. Só não fico mais aqui.
– Vai não, Rosa, que filha minha não sai de casa sem homem. Que filha minha...
Rosa beijou a mãe e saiu sem falar com as irmãs. Andou hora e meia até a estrada grande. Pediu carona e entrou no primeiro caminhão que passou.
– Vai para onde?
– São Paulo.
– Vou também.
Sentou ao lado do motorista velho e mal encarado e fixou os olhos na estrada.
– Quanto é que pago pela carona?
– É nada não. É só fazer a companhia que eu preciso.
– Companhia?
– Pois é. Companhia de mulher.
– É sem-vergonhice o que você quer.
– É só amor.
– Amor não é isso não.
– Amor é o quê então?
Rosa ficou calada pensando em Zeca. Amor com Zeca era bom.
Olhava reto para a estrada, pensando no amor de Zeca e na esperança da maldita que não vinha. Pedra maldita. Olhava reto para a estrada quando o caminhão parou debaixo de uma árvore grande. Quando o homem tocou seu corpo doído pela espera, retesou-se toda, quero não que tenho meu homem. Tem nada, sua vadia. Mulher sozinha na estrada é mulher vadia.
Quando o homem marcou seu corpo com a gosma dele, Rosa pôs para fora o nojo que sentiu. Melou o caminhão com seu vômito e desceu sem calcinha, com a trouxa nas mãos. Sentou na beira da estrada sem saber onde estava, que nunca antes tinha saído de sua roça. Passou a mão pelas pernas e sentiu a gosma do homem que já tinha ido embora com o caminhão borrado. Pôs a cabeça entre as pernas e sentiu o cheiro que era como o cheiro todo da feiúra do mundo.
Impregnada, olhou para a estrada vazia e pediu a Deus.
Deus sabe o quê.
(Abril de 2008)
quinta-feira, 13 de maio de 2010
Avesso
Pra mostrar minhas entranhas e descansar na paz de meus exteriores. Pra assustar o mundo, desentranhando.
Se alguém me visse...
(Meados dos anos 90)
sexta-feira, 7 de maio de 2010
Má companhia
Só erva daninha, espinhos,
azedumes.
Mato sementes,
deixo amargar a seiva,
escarneço da esperança.
Vou já me largar.
(Início dos anos 90)
segunda-feira, 3 de maio de 2010
Serena
Busco belezas escondidas, serena, me desconhecendo. O que é feito dos sustos, os fantasmas, onde andam? A quietude já me assusta. Acostumei-me na angústia, que faço? O que está por vir à luz? Talvez lamentos doces, lembranças das lavadeiras do rio. Que rio? Trago lembranças próprias e alheias, já nem sei... Imagino cinco mulheres em cinco pedras grandes nas águas do rio; reclamam do sol, matam mosquitos, se queixam do sabão que é pouco e ruim, da roupa que é muita e muito suja, da patroa que é ruim e finge ser boa, dos filhos que são pobres e não obedecem, do marido que... Imagino que reclamam e que depois cantam, e que depois riem, riem.
Continuo em imagens e já posso me lamentar: meu pai morreu, minha mãe não me abraçou, meus irmãos são turrões, minha irmã não me ouviu, meu amor não veio... minha vida é lenta e sonolenta. É que adoro dormir e andar lento. Quando durmo, sonho, e cada sonho é um sopro do vento. Quando sonho, crio. Criar é um pouco ser livre. Uma vez sonhei que carregava um bebê no colo, ele mamava e de um seio vinha leite ruim, amargo, do outro, o leite bom, doce, maravilha de mel; ele bebia o leite ruim, depois o bom, e eu também sentia o gosto, gostoso de querer morrer sentindo.
Na roça, quando éramos crianças, bebíamos desse leite, eu e minhas primas. Acordávamos cedo, pegávamos as canequinhas de plástico com açúcar, íamos nos sentar no curral. Minha canequinha era amarela, o vaqueiro enchia primeiro só de espuma, nós bebíamos, e depois ele enchia outra vez, só de leite. O sol começando o dia e nós lá, felizes com os bigodes brancos.
Se eu fosse um homem velho, criaria um lindo bigode branco. Se alguém perguntasse como pintei, responderia firme: foi pintado por deus, e faria o desenho de deus, em pessoa, pintando em mim mais uma arte.
As artes de deus são tantas que bigode é coisa simples, tão simples, que ele bem me poderia fazer um agora mesmo, ainda que jovem e mulher. Sairia por aí, de bigode branco olhando as pessoas. Se me olhassem muito, diria: que olhas? sou um homem velho, não vês? E seguiria. Se encontrasse um vendedor de bengalas, compraria uma. Se me ensinassem a tremer e claudicar, aprenderia. Os seios? os apertaria bem firmes com uma faixa, e cortaria os cabelos bem rentes. Quando enfim ninguém me duvidasse, me sentaria no banco da praça e esperaria pelos netinhos. Contaria as histórias de meu passado. Que maravilha inventar histórias para encher toda a vida de um homem. Depois de tudo, lavaria o bigode e esperaria nova arte de deus, ternamente.
A espera me amolece de preguiça. Vontade de deixar tudo correr em paz, sem força. Só parada, espreitando o tempo como quem vê um barco se perder no mar.
A serenidade cria como quem borda. Sem estardalhaços.
Hoje cedo, quando vinha subindo a rua, o vento veio e deixou meu cabelo em alvoroço. Parei para arrumar, só de medo que um homem bonito me pegasse desprevenida. Acho que foi só isso a ternurinha que encontrei. Me desdobrei e de triste fiquei alegre. Me desdobro sempre em esperança.
A esperança é verde e embeleza meu olhar. É beleza assustada, não é de todo dia, sorrateira como coelho em beira de estrada. Ando sempre à procura de coelhos verdes de surpresa. Procura tola, pois já sei que aparecem quando bem querem e nunca onde pedi.
Hoje a esperança está calma, sem sobressaltos. E eu nem sabia que era possível.
(Meados dos anos 90)
sábado, 1 de maio de 2010
Saliva
a melhor coisa da vida é o sexo
eu, depois de muito experimentar, vi que não –
melhor era criar letras
criar filhos
criar amor
amar um homem
até sentir a saliva de deus molhar tudo o que existe
e, então, boquiaberta, entendi:
a melhor coisa da vida é o sexo
(Setembro de 2009)
sexta-feira, 30 de abril de 2010
A mentira e o silêncio
Não fosse por isso, seria só silêncios.
(Meados dos anos 90)
quinta-feira, 29 de abril de 2010
O cheiro do lixo
Walace não reclama. Trabalha a manhã toda. Almoça a marmita fria, cochila na sombra do caminhão, trabalha a tarde toda, encerra o dia. Toma uma ducha e põe de volta a roupa que veio de casa. Não perde tempo com os colegas que maldizem a vida. Não aceita a cachaça que lhe oferecem todos os dias. Não sonha com outro trabalho. Aceita a vida que tem.
Só não agüenta o cheiro que fica no nariz e não sai mais. Quando chega em casa toma outro banho demorado, esfrega cada pedaço do corpo, assoa o nariz com raiva, escova os dentes mais de uma vez, passa álcool nas mãos. Quando sai do banho, vai até a cozinha ver o jantar e reclama com a mulher que não consegue tirar o cheiro de suas roupas. Reclama com os filhos que não se perfumam. Reclama com os vizinhos que a rua cheira mal. Não come direito porque a comida tem cheiro de lixo. Não toca a mulher na cama porque a cama tem cheiro de lixo. Na boca da mulher sente o gosto do lixo.
Vai sozinho para o batente da porta e fica parado olhando a rua. Respira fundo e sente, a cada inspiração, o cheiro fétido. Então respira rápido e curto como cachorro cansado e sente ainda o cheiro do lixo. Entra de novo em casa e não escuta a mulher e os meninos que chamam. Entra no quarto e bate a porta com raiva. Que ninguém o incomode que leva pancada como a porta.
Mas no dia seguinte acorda disposto. Vai para o trabalho sem reclamar. O cheiro entorpece seus sentidos, o dia passa como os outros. Walace aceita a vida que tem.
(Abril de 2008)
quarta-feira, 28 de abril de 2010
Liberdade
Enquanto ela voa, só penso liberdades. Me arrepio e me engano, livre. É então que viajo por palavras sem asas e sinto cair o cinto que, por segurança, me prende à vida.
Perco o fôlego.
(Meados dos anos 90)
terça-feira, 27 de abril de 2010
Firmina e Maneco
Mas enquanto pulava corda, o pensamento de Firmina voava livre e ela quase imaginava o que não acreditava que existia. Mas ela temia tanto que quando uma imagem quase se formava, ela pulava mais e mais rápido e não deixava a imaginação se libertar da certeza de que o mundo era só aquele e pronto.
E foi pulando corda que ela viu o Maneco vindo subindo a colina, já dentro do sítio que era do pai e da mãe e que devia ser igual ao mundo todo. Vinha trazendo uma coisa na mão, e vinha correndo feito doido.
– Olha, Firmina! Olha aqui comigo! Agora você vai ver o mundão que eu vi lá na cidade. Pára com essa corda e olha aqui comigo.
Firmina não parou enquanto ele não chegou no topo da colina, no terreiro bem em frente a sua casa. Maneco trazia uns papéis na mão.
– Que isso, Maneco?
– Pois não são as fotografias que a tia tirou quando fiquei lá com ela, na cidade grande? Olha tudo aqui comigo, e você vai ver que beleza.
Firmina era desconfiada demais e tentou sair sem ver nada, mas Maneco não deixou. Segurou Firmina pelo braço e sentou na grama com ela. Foi explicando cada foto que Firmina pegava nas mãos. Foi contando das coisas que tinha feito e de tudo que tinha gostado. Firmina olhava como quem folheia um livro de histórias. Vez ou outra parava para coçar o bicho que lhe crescia no dedinho do pé. Nem viu Donana que vigiava os dois da porta de casa, que tinha medo das brincadeiras de Maneco que já não era tão menino. Nem viu o Zé que mexia e remexia na ração das galinhas ali por perto vigiando os dois, que tinha medo das vontades da filha que já não era tão menina.
Firmina, nem menina nem moça, olhava as fotos como quem vê figuras de livros.
– Uma beleza, Maneco, mas não foi você mesmo que desenhou, pois foi?
– É desenho, não, criatura, é fotografia, é o que é de verdade e sai aqui no papel direitinho.
Firmina riu de prazer, coisa engraçada era mentira acreditada.
– Pois está certo, Maneco, tudo isso aí é de verdade, mesmo, não é? Mas quem foi que desenhou as fotografias, hein, não vai me contar não?
Maneco suspirou sem saber explicar a fotografia que ele mesmo não entendia direito, mas que todo mundo lá na cidade entendia e fazia sem parar. Como é que pode essa tal de fotografia copiar o que é de verdade sem usar papel nem tinta?
E foi olhando o riso de Firmina que Maneco deu de duvidar das coisas que ele mesmo tinha visto e que tinha posto na fotografia. Sem segurar o olhar de Firmina que continuava firme na certeza de tudo que sabia, Maneco abaixou seus olhos e, sentado no terreiro com o olhar voltado para o chão, não sabia mais do que era que sabia e do que não sabia. Maneco era menino e tinha o olhar voltado para o chão onde Firmina agora pisava firme, batendo a corda e pulando, olhar fixo na descida da colina que certamente levava ao resto do mundo que era todo igual a esse: a plantação e a criação, o pai e a mãe, o sítio e o sítio vizinho, Firmina e Maneco.
(Abril de 2008)
segunda-feira, 26 de abril de 2010
Redenção
desgosto sem fim.
Peguei os vasos de violeta
e fui colocar terra,
precisava.
Sujei as unhas,
lavei corpo e cabelo,
respirei.
Empurrei a tristeza com as mãos.
(Início dos anos 90)
domingo, 25 de abril de 2010
Desterro - trecho
– Eu não quero sair daqui.
– Por quê?
– Porque estou começando a me sentir bem aqui e há muito tempo não me sinto bem em nenhum lugar.
– Mas é porque está se sentindo bem que deve ir para casa; hospital não é lugar para se viver quando se pode viver em casa.
– Mas eu não posso.
Ele me olhou em silêncio, esperando que eu continuasse, que talvez me explicasse.
– Não posso porque viver em casa seria como respirar a liberdade.
Ele agora sorriu:
– E não é bom o perfume da liberdade?
Fechei os olhos e respirei profundamente. Era bom, era o melhor dos perfumes, mas não cabia mais em mim. Abri novamente os olhos e o olhei sem medo.
– Eu não posso mais sentir o perfume, depois de ter respirado o cheiro fétido da morte.
– A morte, Sofia, é inerente à vida.
– Mas eu senti o cheiro da vida exuberante sendo tragada pela boca fétida da morte, e isso me preenche inteira, não há mais espaço.
Ele então se levantou e me estendeu a mão, me convidando a levantar também. Saímos do consultório e ele me fez andar até o portão do hospital, depois de atravessarmos todo o jardim da entrada. Ficamos um tempo parados olhando a rua. Era uma rua larga, não muito movimentada. Mas movimentada o suficiente para que eu visse crianças, velhos, um casal de namorados, cachorros andarilhos, um mendigo sujo. Vida que caminhava pelas ruas, vida que corria em meu corpo, movimento. O cheiro, o cheiro. Perfume? Cheiro de comida, pão da padaria da esquina. Que simples. Cheiro de pão fresquinho da padaria da esquina. Que simples. Me emocionei com a possibilidade de ver de perto o cesto cheio de pães.
– Podemos ir até a padaria, doutor?
Fomos andando devagar. Entrei na frente. A padaria era grande, bonita. Paredes brancas rodeadas de pães, biscoitos, doces, bolos, roscas. Cheguei pertinho do grande cesto de pão francês, pãozinho de sal. Era cheiroso, muito cheiroso. Perfume? Tive vontade de tocar um deles. Olhei para ele, que imediatamente entendeu e consentiu. Peguei em minhas mãos o pãozinho ainda quente e o cheirei de perto. O perfume, sim, perfume, penetrou-me por dentro e me preencheu com suavidade. Cada célula do meu corpo recebia o cheiro morno e gostoso. Seria gostoso prová-lo, desta vez não olhei para ele, mordi o pão com força sem pedir permissão. Mordi sem doçuras, que morder não é nunca capaz de doçuras. Mordi como se morde. Mastiguei. Engoli. Senti o pão tocar meu estômago, senti que tinha um estômago. Havia um vazio, um espaço por onde o pão entrou em mim. Havia espaço.
Um suave relaxamento me permitiu sentir a suavidade do que me acontecia. Havia um espaço. Se havia um espaço algo poderia entrar e algo poderia se fazer. Havia um espaço... Segurei o pão contra o peito, abracei-o. Cheirei-o novamente antes de dar uma nova mordida. Com a boca suja por farelos que se colaram à minha pele como em pequenos abraços, com um pequeno sorriso que se esgueirava por entre os farelos, me virei outra vez e o vi ainda lá, à minha espera. Quando viu meu rosto, sorriu, e seu sorriso era limpo e largo e me ajudou a abrir-me inteira num sorriso novo. Caminhei até onde ele estava e juntos voltamos ao hospital. Cristiano me esperava no quarto com todas as minhas coisas arrumadas e um vestido novo sobre a cama. Era amarelo com flores. Era lindo e era muito para mim. Como me vestir com tamanha primavera?
(Trecho do romance Desterro, publicado pela Editora Manuscritos, em 2010. À venda na Livraria Café Book, à Rua Padre Rolim, 616, Belo Horizonte - (31)3224 5748)
Sobre o escrever
E eu nem sei o que é insofismável.
(Meados dos anos 90)
O tigre e deus
Tenho muito medo de bicho. Até de tigre. Cachorro, só acho bonito de longe. Se chega perto, quero mais é sair correndo, me esconder e quem sabe ser bicho também. Gosto de gato, porque é bonito e não pede carinho. O que mais não gosto nos cachorros é o jeito que têm de me fazer sentir culpa: olham sempre pedindo, se esfregam querendo brincar, e eu sempre só quero dizer não, que tenho nojo da boca deles.
Igual criança pedindo na rua. Se não dou, sofro. Se dou, sofro também. Tem dia que dou por alegria, ou não dou por preguiça. Não consigo ter um jeito definido pra viver, sigo com o vento. Gostaria de ser um homem de terno e sempre saber o que fazer. É mais fácil.
Ando transformando o difícil em fácil. Já me conformei: sou mesmo sem prumo, desentendida de tudo. Resolvi aceitar. Cada felicidade que vem, agradeço. A cada desconsolo, suspiro.
Saber mesmo, só isso: a vida toda quero continuar querendo amar. Meu coração é tigre e tigre não morre nunca - é nisso que creio. Deus cuida do que creio.
Deus é sempre um susto. Às vezes estou feliz - ontem foi assim - e quase me morro. Quando prevejo o quase, me lembro de deus e agradeço; emocionada, agradeço até por ter uma casa para onde voltar e me proteger da chuva. Quando agradeço, me esvazio. Outras vezes, é o contrário: quase me acabo em tristeza, e então me lembro de deus e peço, e quando peço mais me emociono, e me encho tanto de esperança que me levanto e vou lavar o rosto. Sempre que me lembro de deus me transformo.
E há também as vezes em que digo o nome de deus em vão. Deve ser pecado, mas não me emendo. Se encontro alguém que gosto, digo que deus mandou; se não faz sol quando estou na praia, digo que é maldade de deus. Mas digo sem fé, só por dizer. É gostoso, faz a boca doce.
Deus é a palavra mais linda, mais que amor.
Até desconfio que a beleza do amor vem de deus. Amar é ver deus mais de perto. Ou será que pensar em deus é um jeito de aprender a amar?
Amor se aprende, agora sei. O que dói é não saber como aprender. Se soubesse, ensinaria a meu filho. Só quero é ver meu filho sabendo o amor, o resto esqueço.
Uma coisa já sei: não se pode desistir nunca. Filho, amor desprezado não é o fim do amor, espera com calma que ele renasce, não esquece de esperar. Todo dia vou dizer isso a ele. Quando ele entender, já posso ir.
O amor tem mil formas, para cada um, para cada tempo. O meu jeito, agora, parece um pão fresquinho, nem sei.
Quando criança, assisti Marcelino, Pane e Vino e achei a coisa mais linda. Desde então pão e vinho me lembram menos Jesus do que o filme, e passei a sentir esse aperto por dentro, vontade de poesia.
Vendo a beleza do mundo quase digo que é isso a poesia. Mas não digo. Poesia só nasce quando um coração se comprime no confronto com a beleza do mundo. O que vem depois pode ser um suspiro, ou um poema redondo.
Conheci um dia uma menina chamada Poema. Seus pais não sabiam que toda criança já é, desde sempre, um poema. Tudo o que escrevo é uma busca da primeira poesia, aquela que nasceu na primeira vez em que o mundo e meu coração se encontraram.
O medo que tenho de bicho deve ser o medo que vem do poema que já fui. Queria ser bicho e não ter medo de gente. Tenho mais medo de gente que de bicho, confesso. O medo de bicho é só um fingimento. Mordida de cachorro é um arremedo de dor diante de machucado feito por gente em meu coração.
A coisa que mais me dá medo é susto. O que mais me dá susto é choque. Quando abro descalça o forno elétrico, tomo choque e não me conformo: grito e me sento no chão tremendo até o susto passar.
Choque maior foi quando meu pai adoeceu para morrer. Acho que foi aí que tomei esse medo de susto.
(Meados dos anos 90)
terça-feira, 20 de abril de 2010
Primeiras letras
O meu sítio
Um dia, eu e mamãe fomos para o sítio.
Quando nós chegamos lá, nós fomos dormir!
Eu passei uma noite tão tranquila!
E mamãe também!
No outro dia eu comi tanto...
Minha barriga quase estourou!
Eu dormi o dia inteiro.
Só acordei no outro dia!
Eu fui para a aula com tanto sono.
Quase que eu morria de sono.
Eu voltei e caí na cama.
Quando eu acordei, eu levei um susto!
Tinha 1 rato no meu quarto!
Eu matei o rato com 1 vassoura!
O rato ficou todo estremecido!
A vassoura ficou toda suja do rato!
A empregada nunca mais quis varrer o chão!
Mamãe teve que comprar outra vassoura!
Mamãe gastou 300.000.000 de cruzeiros.
Apareceu 999.000.000 de ratos lá em casa.
Nós chamamos a polícia!
A polícia prendeu todos os ratos!
A delegacia ficou lotada de ratos!
E nós ficamos livres dos ratos!
(escrito em 8 de maio de 1976, quando eu tinha acabado de completar 7 anos)