sexta-feira, 24 de dezembro de 2010

Natal

Hoje é natal. E o que sinto é um vazio que quer ser preenchido. A bebida e a comida da festa não me atraem. Menos ainda um possível presente. A companhia da família, sim, um leve consolo. Os laços esgarçados se reconstituem levemente. Mas o coração só se aquieta com o amor que sussurra de longe. Amor que não se resume ao que sinto por cada uma das pessoas a quem quero bem. Nem ao amor inteiro que tenho pelas filhas. Nem ao amor de delicadezas que vivo com o homem. Nem ao amor de gratidão que dedico à mãe. Nem ao amor de companhia com que me confortam os irmãos e amigos. E não é uma simples soma disso tudo. É, antes, o que possibilita a existência de cada um desses amores. É o que lhes oferece a substância. Amor que provém, ao mesmo tempo, da distância infinita do cosmos e da interioridade secreta da alma, e que se derrama sobre tudo o que existe.
E é quando pressinto a chegada suave desse amor, que posso dizer: hoje é natal.

(Natal de 2010)

quarta-feira, 15 de dezembro de 2010

O pote de ouro

Era uma vez uma menina que já nasceu dona de um pote de ouro, em um reino onde a noite era sempre escura. Enquanto ela crescia, o pote esteve sempre ao seu lado, mas ela não sabia como utilizá-lo. Ela tinha tudo que precisava, e não se lembrava de usufruir do ouro que era dela. Além disso, muito cedo percebeu que muitas pessoas do seu reino não tinham nem ao menos uma única moeda de lata, e então pensou que era injusto que ela tivesse um pote inteiro de ouro só para ela. Deixou de lado o pote e seguiu crescendo.
Quando era quase moça, decidiu que era a hora de aceitar o que era seu, pois o pote continuava lá, ninguém jamais havia tocado nele. Era que, sendo dela, só ela poderia se servir dele e, portanto, não tomá-lo para si seria o mesmo que transformá-lo em lixo. E ela soube que não devia deixar virar lixo uma dádiva tão preciosa.
Porém, quando aprendia aos poucos a se servir do pote, perdeu seu pai, e sentiu-se triste e culpada, e encheu-se de raiva, e desgostou-se do que era seu, pois não tinha dado a ela nenhuma sorte. Seguiu na vida sem o pote, e sofreu. Sofreu perdas, dores, e, sobretudo, sofreu um imenso vazio que fazia com que não se reconhecesse em nada em seu reino tão grande.
Longos anos se passaram. E ela um dia encontrou um homem que a olhou com amor. E a convidou para um passeio, e depois para um descanso, e depois para a vida toda juntos. Mas ela teve medo de aceitar e disse a ele que não podia, porque trazia no peito uma tristeza e um vazio que nunca a deixariam ser feliz. E contou a ele que tinha nascido com um pote de ouro. E ele disse:
– Para que serve o ouro do seu pote?
E como ela não respondeu, porque pensava que todo ouro era um só, e só servia para juntar riqueza, ele continuou:
– Acho que seu ouro é o que te falta no buraco do coração. É o que vai fazer você ser o que você é.
E então foram juntos procurar o pote, escondido no fundo de um armário antigo. E quando a menina, agora mulher, deixou cair no chão, pela primeira vez, todo o conteúdo do pote, viu a casa toda se iluminar pelo brilho das moedas. E seu coração foi preenchido pela luz, assim como o corpo se preenche com o pão.
E a mulher e o homem caminharam juntos de mãos dadas, e a luz do pote de ouro brilhava intensa nos olhos da mulher, e ela pôde enfim entender que agora poderia dar ao mundo aquilo que antes era só seu. Tendo tomado para si o que era seu, podia agora doar.
E o homem, então, falou outra vez:
– Agora que a luz do ouro que era seu já vive em seus olhos, você já pode se desfazer dele.
Ela sorriu e foi buscar o pote.
O dia já ia longe, e as trevas da noite já se anunciavam. A mulher e o homem andaram em direção à noite. Andaram até que a escuridão se fizesse completa. E então a mulher abriu o pote e jogou com força todo o ouro em direção ao céu. E cada moeda atingiu uma distância imensa.
E a noite não era mais a total escuridão: tinham nascido as estrelas.

(Junho de 2010. Texto escrito para o concurso de Lendas de Tânia Diniz, no qual recebeu o título de "Destaque" - o resultado do concurso você pode encontrar no Blog da Tânia, Mulheres Emergentes: http://www.mulheresemergentes.com/.)

sábado, 11 de dezembro de 2010

Eu e as folhas

se eu pudesse, rezaria assim:
deus, me dá um jeito de viver com calma
me dá doçura a cada dor sofrida
me dá paciência a cada desalento
e leveza para o perdão –
me faz mais simples
a cada dia
e faz crescer em mim os laços
que me unem a tudo o que me cerca
natureza pessoas universo

mas não rezo
porque meu pedido seria menos
do que o tremor suave das folhas mais leves

(Dezembro de 2010)

quinta-feira, 9 de dezembro de 2010

Amanhecer

acordei com uma felicidade mansa
mansa e leve

como se me fizessem cócegas na alma

(Dezembro de 2010)

domingo, 5 de dezembro de 2010

A morte do desejo

eu, que antes era um impulso
agora sou um filete de água
de sangue
de dor

eu, que antes fui um impulso
agora, dilacerada,
sangro
e grito:

e o que grito não se ouve
porque explode em um silêncio surdo
que me comprime por dentro
e me revela na língua retorcida
que não sabe mais o caminho da palavra

eu, que já fui um impulso
agora sou voz miúda e sedenta
e o que me sacia a sede
é o mistério que corre em cada seiva
em cada fragmento de coisa viva
e não viva
que respira para além de mim

e o que grita minha voz surda
é só o desejo passado
que ainda ousa –
depois de ter sido morto

eu, que já fui desejo
agora sou árvore fincada na terra
florescendo,
bela,
enraizada naquilo que a vida me oferece

(Dezembro de 2010)

sexta-feira, 26 de novembro de 2010

Sem rodeios

A flor é o órgão sexual das plantas.
Não basta isso para entender o que é a beleza da vida?

(Novembro de 2010)

quarta-feira, 24 de novembro de 2010

A menina-vendaval

para Julie

Um dia vi uma menina nascer. Tinha olhos tão firmes, que um dia até me assustaram, e ainda nem tinha parado de mamar. Tinha um corpo tão forte, que se pôs de pé antes da hora. Tinha uma força de vida tão grande, que corria quando fez um ano. E sorria, e quando sorria alegrava o mundo todo. Eu olhava, e ria junto. O pai dela olhava, e ria junto. E eu sentia tanto orgulho que me deixava levar, feliz, pela vida que era dela. Quando andava, corria. Quando falava, tropeçava nas palavras. Quando brincava, era um vendaval. Quando precisava ficar quieta, era uma dificuldade. Nunca ficava sozinha, de tão cheia de amigos que sempre foi. Mas um dia, sozinha no quarto, cheguei preocupada perguntando se estava triste – e ela respondeu: estou pensando. Ah, a menina estava crescendo. Agora, além de pensar, sei que ela também chora sozinha. E nem sempre posso ver. E olho para ela, e lá estão os mesmos olhos, a mesma força, a mesma inquietude. A menina corre para o mundo e não entende tudo o que vê. Mas a menina ama o mundo. E quer correr e alcançar. Corre tanto que deixa coisas pelo caminho. Até me deixa nervosa.
Mas queria só conseguir que ela escutasse: eu continuo toda grande, de tanto orgulho da menina-vendaval que deixa coisas pelo caminho. Porque, por onde ela passa, o mundo todo sorri.

(Novembro de 2010)

Sobrevida

o rumor suave dos bichinhos sob a terra molhada do quintal
me inquieta e me desperta para a vida
que é mais sutil do que esta que
um dia não terei mais

a vida pequena não morre –
passa de um ser a outro
de um tempo a outro

e nós, que nos julgamos grandes,
morreremos sem saber se algum pedaço
– um pedacinho qualquer –
de tudo o que fomos,
permanecerá
para além de nós

porque o que é único não sobrevive naquilo que é diferente de si

(Novembro de 2010)

sexta-feira, 19 de novembro de 2010

Fragmento de coisa

Para o leitor que comentou a postagem do dia 1.8.2010

Sim, agora sei:
o monstro é o desejo.
Perdida,
o olho sem medo
sem luta
e espero.
O monstro-desejo
me toma.
Tomada,
me sento com as palmas das mãos voltadas para o céu
e choro.
Só da natureza vem o consolo.
E o consolo é ser como todas as coisas:
simples folha lançada ao vento
correndo ao sabor de forças
que são enigmas
que são perenes
que estão na infinita distância
daquilo que não posso tocar
com minhas mãos
que são feitas de terra.

(Novembro de 2010)

quarta-feira, 17 de novembro de 2010

Poesia auto centrada

Só falo de mim, quando faço versos.
E a quem pode interessar os versos que faço sobre mim?
Ah, bem sei que a ninguém além daqueles que se interessam por mim.
A não ser que o que falo de mim seja maior do que eu mesma.
A não ser que o que falo de mim seja uma mistura de verdades e mentiras
sobre o que sou, o que penso que sou, o que queria ser, o que nem chego a ser.
A não ser que os versos que faço sobre mim sejam só um jeito torto
de tentar dizer sobre tudo o que vejo quando abro os olhos ao amanhecer –
e o que vejo é sempre marcado pela tonalidade da luz dos meus olhos,
que, por sua vez, são marcados pela luz que me vem de fora.

(Novembro de 2010)

domingo, 14 de novembro de 2010

Nascimento

Vi quando uma criança, com espanto, sofreu mais do que podia compreender. Sofreu por querer o que achava que não devia querer – por pensar que o que queria fazia sofrer quem ela amava e quem estava com quem ela amava – por não conseguir querer o que pensava que era certo.
Vi nascer o sofrimento moral que é o que marca, para sempre, um ser humano que ama.

(Novembro de 2010)

domingo, 7 de novembro de 2010

Pequeno esboço de memória

pequenos pensamentos me vêm do fundo da infância perdida
(as coisas não vão dar certo o que faço é sempre errado as coisas não vão dar certo)
pequenos pensamentos perversos me vêm da infância que persiste
(sou o centro das coisas do mundo que não dá certo sou o centro do mundo das coisas que não dão certo sou o centro)
pequenos pensamentos que me adoecem de medo
me vêm da infância que se confunde
comigo
e o que sou se envereda nas coisas do mundo
e o mundo se envereda em mim com suas imagens
que são minha memória
e faço versos que são textos
e textos que são memórias
– o que sou se enovela com o que invento ser

medo e desejo

quero tanto
e nada vai dar certo
quero tanto
e não sou capaz de nada
quero tanto
e me rasgo agora
quero tanto

medo e anseio

quero

tanto

(Novembro de 2010)

sábado, 30 de outubro de 2010

Madrugada

nunca tão desejada
nem tão querida
nem tão suavemente amada
como quando ele,
em sonho,
deslizou a mão sobre meu corpo
e me trouxe à vida
para além do sonho

(Outubro de 2010)

segunda-feira, 18 de outubro de 2010

Cotidiano

Hoje vi na rua um homem bêbado atrapalhando o trânsito. Colocava-se em sua cadeira de rodas no meio da rua e, quando retirado por alguém que queria ajudar, brigava e voltava para a rua.
E ele era pobre.
E eu não podia nada diante da vida que sangrava escancarada.

(Outubro de 2010)

domingo, 3 de outubro de 2010

Simples

simples
e o sereno da noite cai sobre mim –
espalho as mãos abertas na grama molhada
espalho o desejo pela terra que me contém
o peito se expande e toca o cume

sou só um corpo
mas um corpo que se expande
simples
como o sereno da noite

(Outubro de 2010)

sexta-feira, 24 de setembro de 2010

Reencontro

o sopro suave voltou
e já não rejeito
o que era vulcão
se abriu em flor

(Setembro de 2010)

terça-feira, 21 de setembro de 2010

Sobre o escrever - II

Escrevo porque vivo, desde a infância, uma relação ambígua com o que me cerca. Por um lado, a impressão de uma distância absurda, um abismo entre mim e o mundo; impressão incômoda, pela solidão implicada, mas também prazerosa, pelo ganho de vida interior. Por outro lado, um amor profundo pela exterioridade que me envolve; amor revelado em desejo e fome intensos e perturbadores. Na impossibilidade de estabelecer uma relação direta com o mundo tão desejado, forjei uma ponte – esta ponte é a escrita.

(Setembro de 2010)

sábado, 18 de setembro de 2010

Sobre o que não é bom

Ontem à tarde senti um sopro suave.
Cheiro bom, eu me nutria.
Mas durou pouco e veio vindo um cheiro fétido.
Me curvei para frente em rejeição e dor.
Tombei sobre meu corpo.

Quando tentaram me salvar, não cedi.
Mais tarde, de bem longe, vi brotar a vida na terra ressecada.
Caminhei devagar e pisei nas folhinhas,
pequenas, vida fugidia.
Matei todas, uma a uma,
e caminhei de volta ao ponto de partida.

E já sabia: o cheiro fétido era meu.

(Setembro de 2010)

sexta-feira, 17 de setembro de 2010

Abismo

olho para o mundo
e não me vejo mais
estou perdida de mim
ou foi do mundo que me perdi

olho para os lados e não me encontro mais
talvez foi o mundo que se desfez
em imagens vazias

e eu corro ainda
e procuro uma vida
uma alma qualquer –
as poucas que vejo
sofrem com meu olhar de gula
e eu mesma temo

temo a mim
e ao que não se reconhece no mundo

(Setembro de 2010)

sexta-feira, 10 de setembro de 2010

Natureza

o mundo pulsa
e eu junto no pulsar do mundo –
o que eu sou
faz parte da mesma massa inerte que compõe o que existe

em círculo, o morto e o vivo se combinam
se enovelam
e se revelam nas células mortas que se soltam da minha pele

com elas, se esvai a última certeza
e entre a vida e seu contrário
eu mesma me enovelo em círculo

(Setembro de 2010)

sábado, 28 de agosto de 2010

Quase

Outro dia vi uma coisa bonita, mas não era nada, quase nada, só um quase sorriso de criança. Criança bem pequena, dessas que ainda nem falam, mas que já andam. Sentada no colo de uma outra criança, que talvez já pense que não é mais criança, tão grande e cheia de ideias que já é, sentada no colo dessa criança grande ela me olhava e quase sorria. E eu me deleitava e sorria inteira. E o homem ao meu lado se intrigava. E a criança grande ria junto, macia. E nós três ríamos e a menininha não ria, só quase ria.
E a beleza disso tudo é tão pequenina. Mas é também tão vasta, meu deus, que é quase o bastante para uma vida inteira.

(Agosto de 2010)

segunda-feira, 23 de agosto de 2010

A realidade humana é como a de um ser sem lugar, é saber que se é, ao mesmo tempo, um nada na poeira do universo, e uma infinitude na interioridade da própria vida.
É por isso que durmo e acordo, simples, como um bicho qualquer, e descanso sem entendimento.
Mas desejo.

(Agosto de 2010)

sexta-feira, 6 de agosto de 2010

Águas

Vem de longe uma alegria sorrateira que me comprime a garganta.
O interior do meu corpo é recheado de cores, sombras e calores. Quando sinto medo, chamo de frio. Quando sinto desejo, é fogo, calor que trepida. A tristeza é sombra e aridez, vento seco que corta tudo por dentro. Mas essa alegria de hoje é só um calor manso, como mergulhar em águas quentes. Gostoso e sufocante.
Nado pelas águas mornas, e as águas de dentro se misturam às de fora.
Lancei minha alegria para fora, e assim invadi o mundo. Ou foi o mundo que me invadiu com sua alegria mansa...

(Agosto de 2010)

domingo, 1 de agosto de 2010

Houve um tempo em que morava uma bomba em mim. Temi sua explosão medonha, imaginei medusas, pernas tenebrosas, ruínas.
Quando veio, veio lenta, mais parecendo desabrochar.
Era monstro não, era desejo.

(Meados dos anos 90)

sábado, 10 de julho de 2010

Menina-lagarta

A menina procura pela natureza. Bichos e plantas. Águas que correm. Vento. O cheiro das flores, as cores. A terra avermelhando os pés que descansam simples no riacho que corre.
Ah, a menina olha os pés e os pássaros que chegam perto. Peixinhos fazem cócegas. O pé e os peixinhos. A natureza.
E ela sabe: sou natureza.
A menina, feita natureza, descansa.
E no descanso sorri, e o sorriso se comunica com o mundo. O mundo inteiro é natureza que sorri.
A menina é bicho, e o bicho rola na terra tenra. Os pés ainda molhados se secam na brincadeira de rolar e cair e descansar. O corpo e o mundo.
A menina dança enquanto o corpo e a terra se misturam.
Menina-lagarta. Menina-lagarta coberta de terra. Terra que cobre a menina-lagarta.
E eu sei: eu e o pó somos uma coisa só.

(Julho de 2010)

segunda-feira, 5 de julho de 2010

O girassol

Um girassol voltado para o sol
é como uma vida a desejar o mar -
e o mar é a fonte do amor
e o amor é o que o girassol recebe.

(Julho de 2010)

quarta-feira, 23 de junho de 2010

Pausa

A vida manda bilhetes, cheia de sinais. Quase já acredito.
É só acreditar, e ando mais devagar, sem me importar com a velocidade dos carros, ouvindo o sentido das coisas, do próximo instante. Próximo tão vasto que às vezes é menos que um suspiro, às vezes é bruto, explícito movimento.
Normalmente ando sem ritmo, ofegando com pressa. Se relaxo, transbordo, suada, e perco o centro de mim. Cambalhota. Depois fico alegre, rindo boba das desgraças todas.
Acho a vida engraçada. Quando falo de mim, quase sempre falo rindo. Acho minha vida engraçada. Vivo momentos de profundidade infinita, de compaixão enorme por toda gente: comunhão. Outras vezes, sou só amenidades. Agora, escrevendo séria sobre o mais sério em mim, prevejo um pedaço de mim que voa e calcula: será que vou conseguir encher as páginas todas de um livro? Fútil, sonho ver meu nome impresso na capa linda de um livro. Só pra ver minha escrita existindo, enfim.
Quisera eu ser um livro acabado, pronto, história cumprida. Ver o limite de mim, que belo. Tenho pressa de viver. De morrer?
Ser um livro pronto para alguém ler.
Posso vestir uma máscara mortuária e esperar pelos convidados. Gostaria de estar viva em meu enterro: só assim me leria.
Das mentiras que ando dizendo essa foi a maior. Quero morrer não, ainda quase nem nasci. Quando me sentir nascer completamente, já pressentirei a sombra dela, a Danada. Por enquanto, só expansão. Se desconfio da queda, saio rindo, engraçando tudo.
Era disso que queria falar: ressurreição. Mal me fixo no que quero. Palavra sobre palavra, vendaval. Perdoa se não consigo dizer a que venho.

(Meados dos anos 90)

terça-feira, 15 de junho de 2010

Descanso

Estou deitada num campo de flores
as folhas me tocam o rosto suavemente
o azul do céu me acaricia a alma.
Estou deitada em descanso
e sei:
meu amor me vela de longe.

(Junho de 2010)

sexta-feira, 11 de junho de 2010

Desterro - trecho II

Era domingo de tarde e Lívia estava fechada no quarto desde cedo, sem querer conversa, sem querer até sentar-se na porta de casa com o pai e os meninos. Estava guardando seus segredos. Guardando novos e relendo os que já estavam na caixinha. Eram inúmeros pedacinhos de papel com suas vontades recolhidas pelo medo de seus pais. Ela sabia, ela entendia, tinham medo de que ela se machucasse. Mas eles não viam que machucada ela já estava? A dor era a imensidão daqueles pequenos desejos, era a caixinha abarrotada, já difícil de fechar.
Os bilhetes diziam coisas assim: subir no muro com a menina da casa ao lado e ver o velhinho que mora nos fundos cantar sua música de igreja que já me cansei de só escutar; ir todas as manhãs à pracinha ver as crianças do bairro; andar bem devagar na volta da escola, parando para conversar com as amigas; ter muitas amigas; trazer as amigas para conversar de porta fechada no quarto; brincar de pegador na rua; entrar naquele terreno da casa caída; perguntar para alguém que sabe por que derrubaram a casa; não ter medo da escola e nem do pai; subir na árvore da casa da vizinha...
Lívia lia e relia diversas vezes tudo que tinha escrito. Sua letra estava ficando cada vez mais bonita, a professora elogiava. Lívia sorria olhando a própria letra. Era bom escrever sobre o que queria fazer e não podia. Mas melhor seria fazer. Então o coração se contraía de novo. Lívia então, com muito cuidado, cortava mais pedacinhos de papel e continuava a anotar: participar da aula de dança da igreja; jogar futebol, pelo menos uma vez; sair com Luzia à noite; não precisar rezar só porque a mãe mandava; poder descobrir um jeito diferente de rezar; sair de casa sozinha e correr, correr, correr, até parar cansada e se sentar em qualquer beco; aceitar um copo d’água se alguém lhe oferecesse...
As mãos desacostumadas à escrita se tornavam logo doloridas e Lívia parava outra vez, agora mal contendo a sufocação que a maltratava por dentro.
Os olhos, como poças d’água que não eram nunca pisadas por ninguém, intocadas, se perdiam por entre as ranhuras das paredes. Lívia, sem pensar, continuava a remexer os papéis, arrumando e rearrumando, dando um jeito de fechar a caixinha bem fechada, para que ninguém visse, para que nenhum desejo se perdesse. Ficou ainda muito tempo como estava, sentada na beirada da cama, a caixinha no colo, as mãos pousadas sobre a caixinha pesadamente, quase fazendo doer as pernas, a cabeça levemente tombada para frente. Sozinha no quarto.
Na porta da casa o pai descansava com os meninos. Luzia estava na casa da vizinha, que era o único lugar onde Bastião a deixava ir sozinha sem preocupação. Maria, na cozinha, fazia bolo para o lanche. Pai, vamos para o campinho? Quem perguntava era Diogo, o menino do meio. O pai ficou olhando os cinco meninos, Manoel, quase homem, Jonas, quase rapaz, Diogo, José e Pedrinho, meninos ainda, todos esperando dele alguma coisa, todos iam ser homens como ele era, e poderiam até ser mais fortes do que ele, e poderiam ir um dia embora e até ter raiva dos cuidados dele, mas era assim que era, filho seu, enquanto precisasse dele, não sairia por aí feito bandido não, tinha que viver ali pertinho, respeitando suas regras. Depois Bastião se lembrou de quando era menino no interior e da liberdade que tinha de sair e voltar quando quisesse e das partidas de futebol que não acabavam nunca e das meninas que vinham ver os jogos e dos primeiros namoros e das irmãs que também tinham liberdade de brincar e passear na rua, e quase então entendeu a tristeza de Lívia. Olhou de novo os meninos, Diogo insistindo no pedido, os outros concordando e esperando a resposta. Zé, vai lá chamar sua irmã, ela vai também. Os meninos se olharam escondendo o sorriso, nem se importando de terem que levar Lívia. Mas logo Zé voltou lá de dentro com jeito estranho, Pai, ela disse que não quer sair não. E agora se olharam de novo com susto, só podia ser doença. Bastião foi até o quarto da menina, filha, tá doente, por que não quer sair? Quero não, pai, mas não é doença não. Bastião teve vontade de bater na menina, que não era possível ser tão complicada assim, pois não vivia pedindo para sair e agora que vinha chamar não queria, o que essa menina tem que ninguém entende? Viu então o porta-jóias no colo de Lívia e o tomou em suas mãos, o que é que você tem aqui dentro, aquele safado andou te dando mais presente? O pai agora gritava furioso, deixando Lívia assustada e com medo de perder seus segredos, é nada não, pai, só uns papéis. Que papéis? andou mandando bilhetes então, o que ele quer de você, não vê que você é criança ainda, não vê que você tem pai, aquele cachorro se fingindo de amigo... Não, pai, são só uns papéis, eu é que escrevi neles. Bastião começou a ler e ainda não entendia, que seria aquilo, seriam planos, encontros, não, pai, são só coisas que eu tinha vontade de fazer. Então Bastião de repente entendeu e se lembrou de novo de Carmem e as outras irmãs brincando sem medo pelas ruas e o campo de futebol sempre cheio de meninos e as meninas olhando e às vezes até jogando, e as meninas pulando corda e cantando em roda e a mãe de vez em quando vindo olhar sem susto, só orgulhosa dos meninos todos, ou cansada do serviço que não tinha fim. Mas tudo isso passou muito rápido pela cabeça do pai que não se cansava de ser pai e o que tinha entendido de repente se desfez e começou a gritar outra vez, agora com mais raiva ainda e a raiva era mais da vida desgraçada que era obrigado a levar e que era a única que podia dar a seus filhos, pára de tanta besteira, menina, te falta alguma coisa nessa casa, já sentiu o estômago doer de fome, já ficou sem poder ir à escola, já ficou doente sem ter alguém para cuidar de você?, pára de tanta besteira se não quiser apanhar de novo, que a vontade que eu tenho é de te ensinar à força que a vida é pedra e luta e que você tinha era que agradecer em vez de ficar enfiada neste quarto escrevendo besteira; sai, sai daqui agora, vai para a cozinha ajudar sua mãe, sai. Lívia não saiu do lugar, olhava para o pai aterrorizada, incapaz de se mover. Maria, Maria, vem tirar esta menina daqui, some com esta menina daqui antes que eu acabe com ela. Maria pegou Lívia nos braços e a levou para a cozinha. Sentou com a menina no chão e tentava acalmá-la, ainda ouvindo os gritos de Bastião e os murros que dava na parede, tentando fazer sair a raiva. Os meninos todos assistiam a tudo calados. Luzia escutara os gritos e estava de novo em casa, com Pedrinho no colo.
Na cozinha, Lívia agora em prantos, encolhia-se no colo da mãe que a apertava contra seu próprio corpo, quase querendo que ela fosse parte de sua carne outra vez. No quarto, Bastião rasgou os papéis e quebrou o porta-jóias.


(Trecho do romance Desterro, publicado pela Editora Manuscritos, em 2010. À venda na Livraria Café Book, à Rua Padre Rolim, 616, Belo Horizonte - (31)3224 5748)

quarta-feira, 9 de junho de 2010

Vidraça

Chove.
É água, é linda, e linda
escorre em mim.
Me dano, me canso, me peno
de tanto ser,
derretendo em corrimentos.
Feito mulher, eu, mulher que sou.
Chuva doida!

(Início dos anos 90)

quarta-feira, 2 de junho de 2010

Minha pequena cosmologia

Meu corpo e minha alma, unidos indissoluvelmente, formam o que sou. O corpo é fruto dos movimentos da matéria. A alma é fruto dos movimentos das energias sutis do universo. Unidos em mim, me determinam como um ser único. Com a morte, há a separação, o fim da vida é o fim da união, é o fim do que sou. O corpo retorna à terra, realimentando as forças brutas que o criaram. A alma retorna ao universo, realimentando as energias sutis que a criaram. Mas nem um nem outro sou eu mais.
Enquanto vivo, tenho vida mais plena se mais me aproximo da terra e do universo. Pelo corpo sinto as ondas da terra, do mar, do ar e do fogo – e com elas aprendo, e com elas vivo mais intensa e mais bruta e mais selvagem. Pela alma, sinto o sopro divino que anuncia o amor – e com ele aprendo, e com ele vivo mais simples e mais volátil, mais sabedora das sutilezas que cercam o vivido. Pelo corpo e pela alma me aproximo da felicidade suprema de saber-me unida àquilo que me criou.

(Setembro de 2009)

domingo, 30 de maio de 2010

O dia da noiva

Julieta saiu para trabalhar com a noite ainda escura. Logo, dentro do ônibus ainda vazio, mas já mal cheiroso, veria a chegada das luzes do dia. Carregava a bolsa pesada pelo uniforme e pela marmita já fria. Era uma manhã em que não fazia frio nem calor e Julieta seguia sentindo o balanço do ônibus sem achar ruim, nem bom. Ia para o trabalho, mais um dia. O dia todo limpando os banheiros, as salas e os corredores da universidade onde centenas de jovens iam passar por ela sem dizer bom dia. Mais um dia sentindo o cheiro de privada que não saía mais de seu nariz. Mais um dia esperando encontrar o João que um dia tinha falado com ela e depois nunca mais tinha aparecido. João era um garoto como os outros, cabelo meio comprido, barba por fazer, bolsa de lado cheia de livros. Bolsa comum não, era uma bolsa cor de rosa, era engraçado, homem com bolsa rosa. Mas a diferença maior era que ele tinha falado com ela.
– Oi, como é seu nome?
– Julieta.
– Oi, Julieta. Você todo dia limpa a sala onde venho estudar e eu nunca tinha te perguntado o nome. É estranho, não é, Julieta? Meu nome é João, estudo História, você sabe o que é História? Se quiser, te explico.
– Precisa não senhor, obrigada, viu, mas precisa não senhor.
– Então bom dia, Julieta. Obrigada pela limpeza da sala.
– Bom dia, tem que agradecer não, faço meu serviço.
Era um moço como os outros, mas tinha falado com ela e desde aquele dia não tinha aparecido mais. Julieta queria ver o João de novo, pelo menos assim ia falar com alguém, que as colegas de serviço já nem falavam com ela, diziam que era esquisita demais. Julieta era isso, esquisita e calada, mas desejosa de falar. Falar com alguém que quisesse saber dela, e explicar coisas do mundo. Queria, sim, João, saber o que é a História, mas fiquei foi avexada, disse que precisava não, mas agora quero, quero sim, e o João não volta.
Que foi feito do João que não vem mais para as aulas? Era isso o que Julieta pensava enquanto o ônibus rodava livre no trânsito fácil do início da manhã. Em casa tinha deixado a mãe e a tia dormindo ainda, que agora que se aposentaram não gostavam mais de acordar cedo. Julieta pensava que a vida dela era só isso, mais uma vida igual à da mãe e da tia que viveram sempre juntas, mas também muito sozinhas, que duas irmãs não podiam se fazer felizes não, bom seria ter um marido com quem conversar e sentir a vida correndo como se fosse de dois e não de um só, como eram a vida da mãe e da tia, e a dela mesma, que agora o tempo já passava para ela também e certamente ia acabar mesmo aposentada, dormindo até tarde, sem ninguém com quem gastar o tempo livre da vida sem trabalho.
Mas tinha o João que tinha percebido que ela estava lá, limpando todo dia a sala onde ele ia estudar a História. História de quê, meu Deus, que aquele menino tanto estudava? História. Julieta pensava e pensava e não conseguia entender como é que se estuda a história – história é só contar, contar para alguém escutar. Se o João quisesse, podia contar para ele a sua história: nasci por acaso da barriga de minha mãe sem saber quem é meu pai; minha mãe jura que ele morreu antes do meu nascimento e que é por isso que nunca veio me ver; duvido sempre, deve ser um malandro qualquer que minha mãe escolheu para não morrer seca como minha tia que nunca conheceu um homem; cresci sozinha com minha mãe e minha tia que perderam os pais quando eram pequenas; cresci sem brincar na rua, que duas mães é muito para uma menina só: eu não conseguia sair de debaixo dos olhos delas; cresci com minha mãe e minha tia que trabalharam muito para me sustentar e agora estão aposentadas e eu agora trabalho muito para que elas não fiquem sem os remédios. Quando era moça, ia para a escola, e era até boa aluna, mas não me lembro de nada não, que já faz muito tempo. Fiquei foi seca como minha tia, de homem nunca cheguei nem perto, que tenho medo. Fico é bem quieta vendo o tempo passar, limpando as salas e o chão e as privadas. É só isso.
Quando o ônibus finalmente parou no ponto final, do outro lado da cidade, Julieta desceu com a bolsa pesada e foi andando devagar. Dez minutos depois, cruzou o portão grande da universidade e continuou andando até o prédio onde ia passar o dia limpando. Aí viu de longe o João que chegou bem perto falando bom dia, Julieta. E pegou a bolsa que estava pesada do uniforme e da marmita já fria e foi levando para Julieta, perguntando da vida dela e contando das coisas que estudava. Ela estranhava a falta do peso da bolsa que nunca antes tinha sido carregada por outra pessoa, que Julieta nunca tinha tido quem lhe fizesse gentilezas. Foram juntos até o vestiário do pessoal da limpeza. Ele então entregou a bolsa, Julieta agradeceu, o João disse que não foi nada e seguiu para a sua sala de aula.
Julieta trabalhou o dia todo sem sentir.
Em casa, de noite, nem se cobriu. O corpo pegava fogo como corpo de noiva que acaba de se casar.

(Abril de 2008)

quinta-feira, 27 de maio de 2010

Tripé e um leve sopro

(ou: linhagem megalomaníaca)

Sou uma mulher como Adélia,
rasgo minha alma como Clarice,
mas escrevo sem adornos,
como Graciliano.
E, às vezes, recebo, com paixão,
o sopro lírico do Quintana.

(Janeiro de 2010)

sexta-feira, 21 de maio de 2010

Minha pequena ética


A felicidade do diabo é a felicidade da finitude. Perpassada de angústia e inquietude. Acompanhada pelo medo da perda. Mantida com luta e empenho, se origina nas coisas do mundo e na ilusão de que delas pode provir o infinito.
A felicidade sagrada é a que não tem motivos; é ligada, pois, ao infinito, descolada, desprendida das coisas do mundo. É acordar de manhã e sorrir, e aí então todas as coisas do mundo se banham desse sorriso. A felicidade sagrada não abandona as coisas do mundo, mas também não se origina nelas.

(Fevereiro de 2010)

sábado, 15 de maio de 2010

Rosa no deserto

O Sol a pino esquentava a cabeça de Zeca que comia com o rosto coberto pelo chapéu de couro surrado. Os companheiros, todos agachados como ele, todos de chapéus iguais ao seu, também comiam a marmita requentada no braseiro que eles mesmos aqueciam todos os dias com o Sol no meio do céu. Hora do almoço era hora do calor maior e do descanso que fazia a cabeça voar. Bastava uma pedrinha, uma só, e Zeca largava o garimpo e ia embora com Rosa para a cidade e achava outro trabalho e comprava uma casinha e os móveis e tratava de Rosa com carinho e fazia filhos com ela. Era isso que ela esperava dele, mas Zeca não queria assim, sem nem o dinheiro para a casinha e os móveis e para agüentar a espera do trabalho certo na carteira. Zeca queria uma pedrinha, meu Deus, uma só, para começar a vida com Rosa. Queria riqueza não, queria só uma pedrinha.
Com a marmita vazia no colo, Zeca olhava o campo bem longe. A terra vermelha, torrada pelo Sol que não falhava, dia após dia. A terra machucada pelo Sol. Se não fosse assim, era só plantar e viver tranqüilo com Rosa, comendo o que a terra desse. Mas a chuva não vem e a terra rachada não convida. Zeca veio então para a lavra, o dia todo abrindo buraco com explosão, olho colado na terra aberta, esperança de ver o brilho da pedra. Uma só, uma só. Esperança de pedra que não largava Zeca, que não deixava Zeca ir embora para viver longe dali com Rosa.
Com a marmita vazia e fechada no colo, Zeca pensa em Rosa. Ela não vinha mais trazer café, estava cansada daquela espera.
– Isso não é esperança mais não, homem. Isso é só espera, espera de nada.
– Cala essa boca, Rosa, que não vivo sem minha esperança não.
Rosa se calava, mas a vontade era de falar mais, vamos embora daqui, vamos ver outro lugar e trabalhar e viver com o pouquinho que a gente tiver. Rosa se trancava no quarto e falava com Deus que parecia estar longe dali. Faz esse homem desistir dessa besteira, faz ele voltar para casa e me levar embora com casamento. Faz esse homem me querer de novo. Faz...
Mas Zeca queria, queria sim, queria a Rosa e o casamento e tudo. Queria os filhos e os problemas dos filhos e o cuidado com Rosa. Mas queria antes se preparar, ter o dinheiro que precisava. Parava de pensar e guardava a marmita, com os companheiros já voltando para a lida. Garimpar era passar o dia com terra nas mãos, triturar cada torrão de terra na esperança de encontrar a dureza da pedra. Explodir e fazer buraco, olhar cada canto depois da explosão. Passar a mão na terra, passar a mão em Rosa. Zeca machucava as mãos cada vez mais duras para o corpo de Rosa. Corpo de Rosa cada vez mais doído pela espera de Zeca. Mãos de Rosa que passavam por seu próprio corpo sonhando com as mãos de Zeca cada vez mais raras. Mãos de Rosa que tocavam seu rosto desenhando a tristeza de esperar sem esperança.
No final do dia, Zeca voltava para casa sozinho. Não dormia no garimpo com os outros, sua casa era perto, caminhada de hora e meia. Hora e meia sob o céu escuro, pensando na pedra que não vinha e na espera de Rosa que quase morria. Quando se deitava na cama depois do banho gelado, o corpo doído pelo trabalho e pela caminhada, se apagava antes de todo pensamento. Quando Rosa vinha de surpresa e encontrava o corpo de Zeca dormindo, se deitava ao lado dele e não dormia. Velava o sono de Zeca que era pesado como o peso de seu corpo. Velava sem sono o sono de Zeca que era duro como suas mãos cansadas de alisar a terra rachada. Rosa tomava em suas mãos as mãos do homem que dormia e sentia que as suas também não eram macias e que o trabalho era ferida para o corpo.
Rosa acabava adormecendo com a mão de Zeca entre as suas e quando acordavam o dia quase amanhecia e ele logo se preparava para caminhar de volta para o garimpo onde passaria o dia na esperança renovada pelo sono bendito.
– Vai hoje não, homem, fica aqui comigo. Só hoje.
– Mas minha Rosa, e se for hoje o dia de encontrar? Uma pedrinha só, Rosinha, é o que nós precisamos para ir embora daqui e fazer nossa vida e nossa família...
– E nossos filhos e nossa casa e nossos móveis... Já sei, Zeca, já sei de tudo. Mas quero mais não, quero mais essa espera não.
E Zeca olhava para ela quase com raiva e ia embora com o pão na mão, deixando Rosa sozinha com o café no fogo, olhando da porta da casa o homem caminhando sem olhar para trás, levantando poeira na terra vermelha.
Até que um dia Rosa voltou para a casa onde vivia com a mãe velha e as irmãs solteiras e arrumou as coisas todas que tinha.
– Vai onde, Rosa? Zeca resolveu largar do garimpo?
– É não, mãe. Vou embora sozinha. E é hoje.
– Rosa, mulher sozinha na estrada é mulher vadia. Você não pode não.
– Pois vou, mãe, e se tiver que ser vadia, vou ser vadia. Só não fico mais aqui.
– Vai não, Rosa, que filha minha não sai de casa sem homem. Que filha minha...
Rosa beijou a mãe e saiu sem falar com as irmãs. Andou hora e meia até a estrada grande. Pediu carona e entrou no primeiro caminhão que passou.
– Vai para onde?
– São Paulo.
– Vou também.
Sentou ao lado do motorista velho e mal encarado e fixou os olhos na estrada.
– Quanto é que pago pela carona?
– É nada não. É só fazer a companhia que eu preciso.
– Companhia?
– Pois é. Companhia de mulher.
– É sem-vergonhice o que você quer.
– É só amor.
– Amor não é isso não.
– Amor é o quê então?
Rosa ficou calada pensando em Zeca. Amor com Zeca era bom.
Olhava reto para a estrada, pensando no amor de Zeca e na esperança da maldita que não vinha. Pedra maldita. Olhava reto para a estrada quando o caminhão parou debaixo de uma árvore grande. Quando o homem tocou seu corpo doído pela espera, retesou-se toda, quero não que tenho meu homem. Tem nada, sua vadia. Mulher sozinha na estrada é mulher vadia.
Quando o homem marcou seu corpo com a gosma dele, Rosa pôs para fora o nojo que sentiu. Melou o caminhão com seu vômito e desceu sem calcinha, com a trouxa nas mãos. Sentou na beira da estrada sem saber onde estava, que nunca antes tinha saído de sua roça. Passou a mão pelas pernas e sentiu a gosma do homem que já tinha ido embora com o caminhão borrado. Pôs a cabeça entre as pernas e sentiu o cheiro que era como o cheiro todo da feiúra do mundo.
Impregnada, olhou para a estrada vazia e pediu a Deus.
Deus sabe o quê.

(Abril de 2008)

quinta-feira, 13 de maio de 2010

Avesso

O melhor seria poder virar-me ao avesso. Se fosse um macacão, gostaria de ser sempre pendurada ao avesso no varal.
Pra mostrar minhas entranhas e descansar na paz de meus exteriores. Pra assustar o mundo, desentranhando.
Se alguém me visse...

(Meados dos anos 90)

sexta-feira, 7 de maio de 2010

Má companhia

Hoje nada floresce em mim.
Só erva daninha, espinhos,
azedumes.
Mato sementes,
deixo amargar a seiva,
escarneço da esperança.

Vou já me largar.

(Início dos anos 90)

segunda-feira, 3 de maio de 2010

Serena

Hoje estou comum, escorregando pelo fluxo, sem belezas. Antevejo um segredo se esgueirando pela beirada de mim: estou feliz. Meu coração brinca de ternura e não me conta o motivo. Me sinto triste, me vejo alegre.
Busco belezas escondidas, serena, me desconhecendo. O que é feito dos sustos, os fantasmas, onde andam? A quietude já me assusta. Acostumei-me na angústia, que faço? O que está por vir à luz? Talvez lamentos doces, lembranças das lavadeiras do rio. Que rio? Trago lembranças próprias e alheias, já nem sei... Imagino cinco mulheres em cinco pedras grandes nas águas do rio; reclamam do sol, matam mosquitos, se queixam do sabão que é pouco e ruim, da roupa que é muita e muito suja, da patroa que é ruim e finge ser boa, dos filhos que são pobres e não obedecem, do marido que... Imagino que reclamam e que depois cantam, e que depois riem, riem.
Continuo em imagens e já posso me lamentar: meu pai morreu, minha mãe não me abraçou, meus irmãos são turrões, minha irmã não me ouviu, meu amor não veio... minha vida é lenta e sonolenta. É que adoro dormir e andar lento. Quando durmo, sonho, e cada sonho é um sopro do vento. Quando sonho, crio. Criar é um pouco ser livre. Uma vez sonhei que carregava um bebê no colo, ele mamava e de um seio vinha leite ruim, amargo, do outro, o leite bom, doce, maravilha de mel; ele bebia o leite ruim, depois o bom, e eu também sentia o gosto, gostoso de querer morrer sentindo.
Na roça, quando éramos crianças, bebíamos desse leite, eu e minhas primas. Acordávamos cedo, pegávamos as canequinhas de plástico com açúcar, íamos nos sentar no curral. Minha canequinha era amarela, o vaqueiro enchia primeiro só de espuma, nós bebíamos, e depois ele enchia outra vez, só de leite. O sol começando o dia e nós lá, felizes com os bigodes brancos.
Se eu fosse um homem velho, criaria um lindo bigode branco. Se alguém perguntasse como pintei, responderia firme: foi pintado por deus, e faria o desenho de deus, em pessoa, pintando em mim mais uma arte.
As artes de deus são tantas que bigode é coisa simples, tão simples, que ele bem me poderia fazer um agora mesmo, ainda que jovem e mulher. Sairia por aí, de bigode branco olhando as pessoas. Se me olhassem muito, diria: que olhas? sou um homem velho, não vês? E seguiria. Se encontrasse um vendedor de bengalas, compraria uma. Se me ensinassem a tremer e claudicar, aprenderia. Os seios? os apertaria bem firmes com uma faixa, e cortaria os cabelos bem rentes. Quando enfim ninguém me duvidasse, me sentaria no banco da praça e esperaria pelos netinhos. Contaria as histórias de meu passado. Que maravilha inventar histórias para encher toda a vida de um homem. Depois de tudo, lavaria o bigode e esperaria nova arte de deus, ternamente.
A espera me amolece de preguiça. Vontade de deixar tudo correr em paz, sem força. Só parada, espreitando o tempo como quem vê um barco se perder no mar.
A serenidade cria como quem borda. Sem estardalhaços.
Hoje cedo, quando vinha subindo a rua, o vento veio e deixou meu cabelo em alvoroço. Parei para arrumar, só de medo que um homem bonito me pegasse desprevenida. Acho que foi só isso a ternurinha que encontrei. Me desdobrei e de triste fiquei alegre. Me desdobro sempre em esperança.
A esperança é verde e embeleza meu olhar. É beleza assustada, não é de todo dia, sorrateira como coelho em beira de estrada. Ando sempre à procura de coelhos verdes de surpresa. Procura tola, pois já sei que aparecem quando bem querem e nunca onde pedi.
Hoje a esperança está calma, sem sobressaltos. E eu nem sabia que era possível.

(Meados dos anos 90)

sábado, 1 de maio de 2010

Saliva

há quem diga, só por impulso:
a melhor coisa da vida é o sexo
eu, depois de muito experimentar, vi que não –
melhor era criar letras
criar filhos
criar amor
amar um homem
até sentir a saliva de deus molhar tudo o que existe
e, então, boquiaberta, entendi:
a melhor coisa da vida é o sexo

(Setembro de 2009)

sexta-feira, 30 de abril de 2010

A mentira e o silêncio

Sou mentirosa. Cada coisa que digo de mim, mesmo sendo verdade, é mentira absurda. Tudo que sou, também não sou. Tudo que tenho, também não tenho.
Não fosse por isso, seria só silêncios.

(Meados dos anos 90)

quinta-feira, 29 de abril de 2010

O cheiro do lixo

Walace é lixeiro. De segunda a sábado sai de casa quando o dia amanhece e vai para o trabalho. Mora longe da companhia, é preciso pegar dois ônibus. Leva na sacola o uniforme e as luvas grossas. Chega sempre no horário, toma um gole de café e vai se trocar. Sobe no caminhão com os colegas e segue olhando os carros que vêm atrás. Andam um bocado antes de chegar ao bairro em que coletam o lixo. Começam as paradas. Walace corre e grita como os outros, pega os sacos, joga no caminhão, deixa cair uma coisa ou outra e finge que não vê, como os outros. De vez em quando encontra alguma coisa boa no lixo e leva para casa. Um dia levou uma mochila quase nova para a filha pequena.
Walace não reclama. Trabalha a manhã toda. Almoça a marmita fria, cochila na sombra do caminhão, trabalha a tarde toda, encerra o dia. Toma uma ducha e põe de volta a roupa que veio de casa. Não perde tempo com os colegas que maldizem a vida. Não aceita a cachaça que lhe oferecem todos os dias. Não sonha com outro trabalho. Aceita a vida que tem.
Só não agüenta o cheiro que fica no nariz e não sai mais. Quando chega em casa toma outro banho demorado, esfrega cada pedaço do corpo, assoa o nariz com raiva, escova os dentes mais de uma vez, passa álcool nas mãos. Quando sai do banho, vai até a cozinha ver o jantar e reclama com a mulher que não consegue tirar o cheiro de suas roupas. Reclama com os filhos que não se perfumam. Reclama com os vizinhos que a rua cheira mal. Não come direito porque a comida tem cheiro de lixo. Não toca a mulher na cama porque a cama tem cheiro de lixo. Na boca da mulher sente o gosto do lixo.
Vai sozinho para o batente da porta e fica parado olhando a rua. Respira fundo e sente, a cada inspiração, o cheiro fétido. Então respira rápido e curto como cachorro cansado e sente ainda o cheiro do lixo. Entra de novo em casa e não escuta a mulher e os meninos que chamam. Entra no quarto e bate a porta com raiva. Que ninguém o incomode que leva pancada como a porta.
Mas no dia seguinte acorda disposto. Vai para o trabalho sem reclamar. O cheiro entorpece seus sentidos, o dia passa como os outros. Walace aceita a vida que tem.

(Abril de 2008)

quarta-feira, 28 de abril de 2010

Liberdade

Há uma borboleta me percorrendo o pensamento. É uma carícia doce, como a mão de minha avó.
Enquanto ela voa, só penso liberdades. Me arrepio e me engano, livre. É então que viajo por palavras sem asas e sinto cair o cinto que, por segurança, me prende à vida.
Perco o fôlego.

(Meados dos anos 90)

terça-feira, 27 de abril de 2010

Firmina e Maneco

Firmina passava as tardes inteiras pulando corda no terreiro. De costas para a casa, olhando a colina que descia bem em frente a seus olhos. Pulava corda como quem se põe um castigo. Pulava sem fim, sem ter porque parar. Pulava como quem vive e não sabe por quê. Firmina era pequena e sozinha. O sítio era grande, mas era também sozinho. Firmina tinha pai e mãe, o sítio tinha era dono e dona. Zé e Donana, pai e mãe de Firmina, donos do sítio que era grande, mas não muito, e que pouco rendia do muito trabalho que era feito nele. Era horta e plantio de milho e feijão, era galinheiro e chiqueiro e as duas vaquinhas do curral. Era serviço que se fazia em outras terras, era até serviço de faxina que Donana de vez em quando pegava. E Firmina pulava corda enquanto olhava a colina, e se pudesse parar ia pensar que a colina apontava o caminho por onde ir-se embora. Firmina era pequena, mas não tanto a ponto de não temer o que desejava. Que sinal de crescimento é medo. Firmina, por medo do que desejava, pulava corda a tarde inteira de costas para a casa e de frente para a colina que descia apontando o caminho de saída do sítio. Ela tinha nascido ali mesmo, por mão de parteira, mas não entendia nada da vida que passava. Quando o Maneco do sítio ao lado contou da viagem que fez para a cidade grande, Firmina ouviu sem acreditar, que o mundo só podia ser aquele mesmo ali: as plantações, as criações, o pai e a mãe, a corda, o corpo e a colina. E a gente vivendo sem entender da vida. Descendo a colina era tudo igual, era caminho de saída que não deixava sair, que o mundo haveria de ser sempre o mesmo.
Mas enquanto pulava corda, o pensamento de Firmina voava livre e ela quase imaginava o que não acreditava que existia. Mas ela temia tanto que quando uma imagem quase se formava, ela pulava mais e mais rápido e não deixava a imaginação se libertar da certeza de que o mundo era só aquele e pronto.
E foi pulando corda que ela viu o Maneco vindo subindo a colina, já dentro do sítio que era do pai e da mãe e que devia ser igual ao mundo todo. Vinha trazendo uma coisa na mão, e vinha correndo feito doido.
– Olha, Firmina! Olha aqui comigo! Agora você vai ver o mundão que eu vi lá na cidade. Pára com essa corda e olha aqui comigo.
Firmina não parou enquanto ele não chegou no topo da colina, no terreiro bem em frente a sua casa. Maneco trazia uns papéis na mão.
– Que isso, Maneco?
– Pois não são as fotografias que a tia tirou quando fiquei lá com ela, na cidade grande? Olha tudo aqui comigo, e você vai ver que beleza.
Firmina era desconfiada demais e tentou sair sem ver nada, mas Maneco não deixou. Segurou Firmina pelo braço e sentou na grama com ela. Foi explicando cada foto que Firmina pegava nas mãos. Foi contando das coisas que tinha feito e de tudo que tinha gostado. Firmina olhava como quem folheia um livro de histórias. Vez ou outra parava para coçar o bicho que lhe crescia no dedinho do pé. Nem viu Donana que vigiava os dois da porta de casa, que tinha medo das brincadeiras de Maneco que já não era tão menino. Nem viu o Zé que mexia e remexia na ração das galinhas ali por perto vigiando os dois, que tinha medo das vontades da filha que já não era tão menina.
Firmina, nem menina nem moça, olhava as fotos como quem vê figuras de livros.
– Uma beleza, Maneco, mas não foi você mesmo que desenhou, pois foi?
– É desenho, não, criatura, é fotografia, é o que é de verdade e sai aqui no papel direitinho.
Firmina riu de prazer, coisa engraçada era mentira acreditada.
– Pois está certo, Maneco, tudo isso aí é de verdade, mesmo, não é? Mas quem foi que desenhou as fotografias, hein, não vai me contar não?
Maneco suspirou sem saber explicar a fotografia que ele mesmo não entendia direito, mas que todo mundo lá na cidade entendia e fazia sem parar. Como é que pode essa tal de fotografia copiar o que é de verdade sem usar papel nem tinta?
E foi olhando o riso de Firmina que Maneco deu de duvidar das coisas que ele mesmo tinha visto e que tinha posto na fotografia. Sem segurar o olhar de Firmina que continuava firme na certeza de tudo que sabia, Maneco abaixou seus olhos e, sentado no terreiro com o olhar voltado para o chão, não sabia mais do que era que sabia e do que não sabia. Maneco era menino e tinha o olhar voltado para o chão onde Firmina agora pisava firme, batendo a corda e pulando, olhar fixo na descida da colina que certamente levava ao resto do mundo que era todo igual a esse: a plantação e a criação, o pai e a mãe, o sítio e o sítio vizinho, Firmina e Maneco.

(Abril de 2008)

segunda-feira, 26 de abril de 2010

Redenção

Acordei com dor antiga,
desgosto sem fim.
Peguei os vasos de violeta
e fui colocar terra,
precisava.
Sujei as unhas,
lavei corpo e cabelo,
respirei.

Empurrei a tristeza com as mãos.

(Início dos anos 90)

domingo, 25 de abril de 2010

Desterro - trecho

Não sei quanto tempo fiquei sentada na cadeira do consultório, não sei por quanto tempo chorei. Sei que chorei até o fim, até que as lágrimas não subissem mais, até que eu pudesse abrir os olhos e ver o médico sentado à minha frente, ainda lá, ainda à minha espera. Olhei para ele com olhos novos e pensei que ele era bonito e que talvez estivesse certo. Talvez fosse hora de ir para casa, que o hospital não era minha casa. Mas ele não sabia o quanto doía e o quanto tudo era uma grande mentira, pois a casa de Cristiano também não era minha casa, porque eu não tinha casa, porque eu não tinha nenhum lugar possível no mundo, porque eu não poderia mais me apaziguar em um quarto que fosse meu. Repeti então, agora sem precisar gritar:
– Eu não quero sair daqui.
– Por quê?
– Porque estou começando a me sentir bem aqui e há muito tempo não me sinto bem em nenhum lugar.
– Mas é porque está se sentindo bem que deve ir para casa; hospital não é lugar para se viver quando se pode viver em casa.
– Mas eu não posso.
Ele me olhou em silêncio, esperando que eu continuasse, que talvez me explicasse.
– Não posso porque viver em casa seria como respirar a liberdade.
Ele agora sorriu:
– E não é bom o perfume da liberdade?
Fechei os olhos e respirei profundamente. Era bom, era o melhor dos perfumes, mas não cabia mais em mim. Abri novamente os olhos e o olhei sem medo.
– Eu não posso mais sentir o perfume, depois de ter respirado o cheiro fétido da morte.
– A morte, Sofia, é inerente à vida.
– Mas eu senti o cheiro da vida exuberante sendo tragada pela boca fétida da morte, e isso me preenche inteira, não há mais espaço.
Ele então se levantou e me estendeu a mão, me convidando a levantar também. Saímos do consultório e ele me fez andar até o portão do hospital, depois de atravessarmos todo o jardim da entrada. Ficamos um tempo parados olhando a rua. Era uma rua larga, não muito movimentada. Mas movimentada o suficiente para que eu visse crianças, velhos, um casal de namorados, cachorros andarilhos, um mendigo sujo. Vida que caminhava pelas ruas, vida que corria em meu corpo, movimento. O cheiro, o cheiro. Perfume? Cheiro de comida, pão da padaria da esquina. Que simples. Cheiro de pão fresquinho da padaria da esquina. Que simples. Me emocionei com a possibilidade de ver de perto o cesto cheio de pães.
– Podemos ir até a padaria, doutor?
Fomos andando devagar. Entrei na frente. A padaria era grande, bonita. Paredes brancas rodeadas de pães, biscoitos, doces, bolos, roscas. Cheguei pertinho do grande cesto de pão francês, pãozinho de sal. Era cheiroso, muito cheiroso. Perfume? Tive vontade de tocar um deles. Olhei para ele, que imediatamente entendeu e consentiu. Peguei em minhas mãos o pãozinho ainda quente e o cheirei de perto. O perfume, sim, perfume, penetrou-me por dentro e me preencheu com suavidade. Cada célula do meu corpo recebia o cheiro morno e gostoso. Seria gostoso prová-lo, desta vez não olhei para ele, mordi o pão com força sem pedir permissão. Mordi sem doçuras, que morder não é nunca capaz de doçuras. Mordi como se morde. Mastiguei. Engoli. Senti o pão tocar meu estômago, senti que tinha um estômago. Havia um vazio, um espaço por onde o pão entrou em mim. Havia espaço.
Um suave relaxamento me permitiu sentir a suavidade do que me acontecia. Havia um espaço. Se havia um espaço algo poderia entrar e algo poderia se fazer. Havia um espaço... Segurei o pão contra o peito, abracei-o. Cheirei-o novamente antes de dar uma nova mordida. Com a boca suja por farelos que se colaram à minha pele como em pequenos abraços, com um pequeno sorriso que se esgueirava por entre os farelos, me virei outra vez e o vi ainda lá, à minha espera. Quando viu meu rosto, sorriu, e seu sorriso era limpo e largo e me ajudou a abrir-me inteira num sorriso novo. Caminhei até onde ele estava e juntos voltamos ao hospital. Cristiano me esperava no quarto com todas as minhas coisas arrumadas e um vestido novo sobre a cama. Era amarelo com flores. Era lindo e era muito para mim. Como me vestir com tamanha primavera?

(Trecho do romance Desterro, publicado pela Editora Manuscritos, em 2010. À venda na Livraria Café Book, à Rua Padre Rolim, 616, Belo Horizonte - (31)3224 5748)

Sobre o escrever

O Sol me aquece as costas agora, e eu insistindo aqui, com prazer e desprazer, treinando. Como se forma um escritor? É estranha a arte. Um dia a gente descobre: sou das artes, sou artista. E daí? O que fazer depois de descobrir-se? A arte nunca vem pronta. Entre saber-se escritor e fazer-se escritor há um caminho insofismável a ser percorrido.
E eu nem sei o que é insofismável.

(Meados dos anos 90)

O tigre e deus

Tenho muito medo de bicho. Até de tigre. Cachorro, só acho bonito de longe. Se chega perto, quero mais é sair correndo, me esconder e quem sabe ser bicho também. Gosto de gato, porque é bonito e não pede carinho. O que mais não gosto nos cachorros é o jeito que têm de me fazer sentir culpa: olham sempre pedindo, se esfregam querendo brincar, e eu sempre só quero dizer não, que tenho nojo da boca deles.

Igual criança pedindo na rua. Se não dou, sofro. Se dou, sofro também. Tem dia que dou por alegria, ou não dou por preguiça. Não consigo ter um jeito definido pra viver, sigo com o vento. Gostaria de ser um homem de terno e sempre saber o que fazer. É mais fácil.

Ando transformando o difícil em fácil. Já me conformei: sou mesmo sem prumo, desentendida de tudo. Resolvi aceitar. Cada felicidade que vem, agradeço. A cada desconsolo, suspiro.

Saber mesmo, só isso: a vida toda quero continuar querendo amar. Meu coração é tigre e tigre não morre nunca - é nisso que creio. Deus cuida do que creio.

Deus é sempre um susto. Às vezes estou feliz - ontem foi assim - e quase me morro. Quando prevejo o quase, me lembro de deus e agradeço; emocionada, agradeço até por ter uma casa para onde voltar e me proteger da chuva. Quando agradeço, me esvazio. Outras vezes, é o contrário: quase me acabo em tristeza, e então me lembro de deus e peço, e quando peço mais me emociono, e me encho tanto de esperança que me levanto e vou lavar o rosto. Sempre que me lembro de deus me transformo.

E há também as vezes em que digo o nome de deus em vão. Deve ser pecado, mas não me emendo. Se encontro alguém que gosto, digo que deus mandou; se não faz sol quando estou na praia, digo que é maldade de deus. Mas digo sem fé, só por dizer. É gostoso, faz a boca doce.

Deus é a palavra mais linda, mais que amor.

Até desconfio que a beleza do amor vem de deus. Amar é ver deus mais de perto. Ou será que pensar em deus é um jeito de aprender a amar?

Amor se aprende, agora sei. O que dói é não saber como aprender. Se soubesse, ensinaria a meu filho. Só quero é ver meu filho sabendo o amor, o resto esqueço.

Uma coisa já sei: não se pode desistir nunca. Filho, amor desprezado não é o fim do amor, espera com calma que ele renasce, não esquece de esperar. Todo dia vou dizer isso a ele. Quando ele entender, já posso ir.

O amor tem mil formas, para cada um, para cada tempo. O meu jeito, agora, parece um pão fresquinho, nem sei.

Quando criança, assisti Marcelino, Pane e Vino e achei a coisa mais linda. Desde então pão e vinho me lembram menos Jesus do que o filme, e passei a sentir esse aperto por dentro, vontade de poesia.

Vendo a beleza do mundo quase digo que é isso a poesia. Mas não digo. Poesia só nasce quando um coração se comprime no confronto com a beleza do mundo. O que vem depois pode ser um suspiro, ou um poema redondo.

Conheci um dia uma menina chamada Poema. Seus pais não sabiam que toda criança já é, desde sempre, um poema. Tudo o que escrevo é uma busca da primeira poesia, aquela que nasceu na primeira vez em que o mundo e meu coração se encontraram.

O medo que tenho de bicho deve ser o medo que vem do poema que já fui. Queria ser bicho e não ter medo de gente. Tenho mais medo de gente que de bicho, confesso. O medo de bicho é só um fingimento. Mordida de cachorro é um arremedo de dor diante de machucado feito por gente em meu coração.

A coisa que mais me dá medo é susto. O que mais me dá susto é choque. Quando abro descalça o forno elétrico, tomo choque e não me conformo: grito e me sento no chão tremendo até o susto passar.

Choque maior foi quando meu pai adoeceu para morrer. Acho que foi aí que tomei esse medo de susto.


(Meados dos anos 90)


terça-feira, 20 de abril de 2010

Primeiras letras

Por brincadeira, e por amor à criança que fui:


O meu sítio

Um dia, eu e mamãe fomos para o sítio.
Quando nós chegamos lá, nós fomos dormir!
Eu passei uma noite tão tranquila!
E mamãe também!
No outro dia eu comi tanto...
Minha barriga quase estourou!
Eu dormi o dia inteiro.
Só acordei no outro dia!
Eu fui para a aula com tanto sono.
Quase que eu morria de sono.
Eu voltei e caí na cama.
Quando eu acordei, eu levei um susto!
Tinha 1 rato no meu quarto!
Eu matei o rato com 1 vassoura!
O rato ficou todo estremecido!
A vassoura ficou toda suja do rato!
A empregada nunca mais quis varrer o chão!
Mamãe teve que comprar outra vassoura!
Mamãe gastou 300.000.000 de cruzeiros.
Apareceu 999.000.000 de ratos lá em casa.
Nós chamamos a polícia!
A polícia prendeu todos os ratos!
A delegacia ficou lotada de ratos!
E nós ficamos livres dos ratos!

(escrito em 8 de maio de 1976, quando eu tinha acabado de completar 7 anos)

domingo, 18 de abril de 2010

Para começar

Este blog será meu caminho para levar meus escritos para fora de mim. Ou a terra onde tentarei plantar minhas flores. Trarei coisas antigas e coisas novas, grandes e pequenas, inteiras e em pedaços. Espero que seja também o caminho por onde receber de volta frutos e novas flores, de fora para dentro de mim.