domingo, 25 de abril de 2010

O tigre e deus

Tenho muito medo de bicho. Até de tigre. Cachorro, só acho bonito de longe. Se chega perto, quero mais é sair correndo, me esconder e quem sabe ser bicho também. Gosto de gato, porque é bonito e não pede carinho. O que mais não gosto nos cachorros é o jeito que têm de me fazer sentir culpa: olham sempre pedindo, se esfregam querendo brincar, e eu sempre só quero dizer não, que tenho nojo da boca deles.

Igual criança pedindo na rua. Se não dou, sofro. Se dou, sofro também. Tem dia que dou por alegria, ou não dou por preguiça. Não consigo ter um jeito definido pra viver, sigo com o vento. Gostaria de ser um homem de terno e sempre saber o que fazer. É mais fácil.

Ando transformando o difícil em fácil. Já me conformei: sou mesmo sem prumo, desentendida de tudo. Resolvi aceitar. Cada felicidade que vem, agradeço. A cada desconsolo, suspiro.

Saber mesmo, só isso: a vida toda quero continuar querendo amar. Meu coração é tigre e tigre não morre nunca - é nisso que creio. Deus cuida do que creio.

Deus é sempre um susto. Às vezes estou feliz - ontem foi assim - e quase me morro. Quando prevejo o quase, me lembro de deus e agradeço; emocionada, agradeço até por ter uma casa para onde voltar e me proteger da chuva. Quando agradeço, me esvazio. Outras vezes, é o contrário: quase me acabo em tristeza, e então me lembro de deus e peço, e quando peço mais me emociono, e me encho tanto de esperança que me levanto e vou lavar o rosto. Sempre que me lembro de deus me transformo.

E há também as vezes em que digo o nome de deus em vão. Deve ser pecado, mas não me emendo. Se encontro alguém que gosto, digo que deus mandou; se não faz sol quando estou na praia, digo que é maldade de deus. Mas digo sem fé, só por dizer. É gostoso, faz a boca doce.

Deus é a palavra mais linda, mais que amor.

Até desconfio que a beleza do amor vem de deus. Amar é ver deus mais de perto. Ou será que pensar em deus é um jeito de aprender a amar?

Amor se aprende, agora sei. O que dói é não saber como aprender. Se soubesse, ensinaria a meu filho. Só quero é ver meu filho sabendo o amor, o resto esqueço.

Uma coisa já sei: não se pode desistir nunca. Filho, amor desprezado não é o fim do amor, espera com calma que ele renasce, não esquece de esperar. Todo dia vou dizer isso a ele. Quando ele entender, já posso ir.

O amor tem mil formas, para cada um, para cada tempo. O meu jeito, agora, parece um pão fresquinho, nem sei.

Quando criança, assisti Marcelino, Pane e Vino e achei a coisa mais linda. Desde então pão e vinho me lembram menos Jesus do que o filme, e passei a sentir esse aperto por dentro, vontade de poesia.

Vendo a beleza do mundo quase digo que é isso a poesia. Mas não digo. Poesia só nasce quando um coração se comprime no confronto com a beleza do mundo. O que vem depois pode ser um suspiro, ou um poema redondo.

Conheci um dia uma menina chamada Poema. Seus pais não sabiam que toda criança já é, desde sempre, um poema. Tudo o que escrevo é uma busca da primeira poesia, aquela que nasceu na primeira vez em que o mundo e meu coração se encontraram.

O medo que tenho de bicho deve ser o medo que vem do poema que já fui. Queria ser bicho e não ter medo de gente. Tenho mais medo de gente que de bicho, confesso. O medo de bicho é só um fingimento. Mordida de cachorro é um arremedo de dor diante de machucado feito por gente em meu coração.

A coisa que mais me dá medo é susto. O que mais me dá susto é choque. Quando abro descalça o forno elétrico, tomo choque e não me conformo: grito e me sento no chão tremendo até o susto passar.

Choque maior foi quando meu pai adoeceu para morrer. Acho que foi aí que tomei esse medo de susto.


(Meados dos anos 90)


2 comentários:

  1. senti vontade de me chorar, de medo...

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  2. Que felicidade poder ouvir essas palavras tão suas. Confesso que senti o cheiro dessas flores - suas.

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