terça-feira, 27 de abril de 2010

Firmina e Maneco

Firmina passava as tardes inteiras pulando corda no terreiro. De costas para a casa, olhando a colina que descia bem em frente a seus olhos. Pulava corda como quem se põe um castigo. Pulava sem fim, sem ter porque parar. Pulava como quem vive e não sabe por quê. Firmina era pequena e sozinha. O sítio era grande, mas era também sozinho. Firmina tinha pai e mãe, o sítio tinha era dono e dona. Zé e Donana, pai e mãe de Firmina, donos do sítio que era grande, mas não muito, e que pouco rendia do muito trabalho que era feito nele. Era horta e plantio de milho e feijão, era galinheiro e chiqueiro e as duas vaquinhas do curral. Era serviço que se fazia em outras terras, era até serviço de faxina que Donana de vez em quando pegava. E Firmina pulava corda enquanto olhava a colina, e se pudesse parar ia pensar que a colina apontava o caminho por onde ir-se embora. Firmina era pequena, mas não tanto a ponto de não temer o que desejava. Que sinal de crescimento é medo. Firmina, por medo do que desejava, pulava corda a tarde inteira de costas para a casa e de frente para a colina que descia apontando o caminho de saída do sítio. Ela tinha nascido ali mesmo, por mão de parteira, mas não entendia nada da vida que passava. Quando o Maneco do sítio ao lado contou da viagem que fez para a cidade grande, Firmina ouviu sem acreditar, que o mundo só podia ser aquele mesmo ali: as plantações, as criações, o pai e a mãe, a corda, o corpo e a colina. E a gente vivendo sem entender da vida. Descendo a colina era tudo igual, era caminho de saída que não deixava sair, que o mundo haveria de ser sempre o mesmo.
Mas enquanto pulava corda, o pensamento de Firmina voava livre e ela quase imaginava o que não acreditava que existia. Mas ela temia tanto que quando uma imagem quase se formava, ela pulava mais e mais rápido e não deixava a imaginação se libertar da certeza de que o mundo era só aquele e pronto.
E foi pulando corda que ela viu o Maneco vindo subindo a colina, já dentro do sítio que era do pai e da mãe e que devia ser igual ao mundo todo. Vinha trazendo uma coisa na mão, e vinha correndo feito doido.
– Olha, Firmina! Olha aqui comigo! Agora você vai ver o mundão que eu vi lá na cidade. Pára com essa corda e olha aqui comigo.
Firmina não parou enquanto ele não chegou no topo da colina, no terreiro bem em frente a sua casa. Maneco trazia uns papéis na mão.
– Que isso, Maneco?
– Pois não são as fotografias que a tia tirou quando fiquei lá com ela, na cidade grande? Olha tudo aqui comigo, e você vai ver que beleza.
Firmina era desconfiada demais e tentou sair sem ver nada, mas Maneco não deixou. Segurou Firmina pelo braço e sentou na grama com ela. Foi explicando cada foto que Firmina pegava nas mãos. Foi contando das coisas que tinha feito e de tudo que tinha gostado. Firmina olhava como quem folheia um livro de histórias. Vez ou outra parava para coçar o bicho que lhe crescia no dedinho do pé. Nem viu Donana que vigiava os dois da porta de casa, que tinha medo das brincadeiras de Maneco que já não era tão menino. Nem viu o Zé que mexia e remexia na ração das galinhas ali por perto vigiando os dois, que tinha medo das vontades da filha que já não era tão menina.
Firmina, nem menina nem moça, olhava as fotos como quem vê figuras de livros.
– Uma beleza, Maneco, mas não foi você mesmo que desenhou, pois foi?
– É desenho, não, criatura, é fotografia, é o que é de verdade e sai aqui no papel direitinho.
Firmina riu de prazer, coisa engraçada era mentira acreditada.
– Pois está certo, Maneco, tudo isso aí é de verdade, mesmo, não é? Mas quem foi que desenhou as fotografias, hein, não vai me contar não?
Maneco suspirou sem saber explicar a fotografia que ele mesmo não entendia direito, mas que todo mundo lá na cidade entendia e fazia sem parar. Como é que pode essa tal de fotografia copiar o que é de verdade sem usar papel nem tinta?
E foi olhando o riso de Firmina que Maneco deu de duvidar das coisas que ele mesmo tinha visto e que tinha posto na fotografia. Sem segurar o olhar de Firmina que continuava firme na certeza de tudo que sabia, Maneco abaixou seus olhos e, sentado no terreiro com o olhar voltado para o chão, não sabia mais do que era que sabia e do que não sabia. Maneco era menino e tinha o olhar voltado para o chão onde Firmina agora pisava firme, batendo a corda e pulando, olhar fixo na descida da colina que certamente levava ao resto do mundo que era todo igual a esse: a plantação e a criação, o pai e a mãe, o sítio e o sítio vizinho, Firmina e Maneco.

(Abril de 2008)

Nenhum comentário:

Postar um comentário