domingo, 25 de abril de 2010

Desterro - trecho

Não sei quanto tempo fiquei sentada na cadeira do consultório, não sei por quanto tempo chorei. Sei que chorei até o fim, até que as lágrimas não subissem mais, até que eu pudesse abrir os olhos e ver o médico sentado à minha frente, ainda lá, ainda à minha espera. Olhei para ele com olhos novos e pensei que ele era bonito e que talvez estivesse certo. Talvez fosse hora de ir para casa, que o hospital não era minha casa. Mas ele não sabia o quanto doía e o quanto tudo era uma grande mentira, pois a casa de Cristiano também não era minha casa, porque eu não tinha casa, porque eu não tinha nenhum lugar possível no mundo, porque eu não poderia mais me apaziguar em um quarto que fosse meu. Repeti então, agora sem precisar gritar:
– Eu não quero sair daqui.
– Por quê?
– Porque estou começando a me sentir bem aqui e há muito tempo não me sinto bem em nenhum lugar.
– Mas é porque está se sentindo bem que deve ir para casa; hospital não é lugar para se viver quando se pode viver em casa.
– Mas eu não posso.
Ele me olhou em silêncio, esperando que eu continuasse, que talvez me explicasse.
– Não posso porque viver em casa seria como respirar a liberdade.
Ele agora sorriu:
– E não é bom o perfume da liberdade?
Fechei os olhos e respirei profundamente. Era bom, era o melhor dos perfumes, mas não cabia mais em mim. Abri novamente os olhos e o olhei sem medo.
– Eu não posso mais sentir o perfume, depois de ter respirado o cheiro fétido da morte.
– A morte, Sofia, é inerente à vida.
– Mas eu senti o cheiro da vida exuberante sendo tragada pela boca fétida da morte, e isso me preenche inteira, não há mais espaço.
Ele então se levantou e me estendeu a mão, me convidando a levantar também. Saímos do consultório e ele me fez andar até o portão do hospital, depois de atravessarmos todo o jardim da entrada. Ficamos um tempo parados olhando a rua. Era uma rua larga, não muito movimentada. Mas movimentada o suficiente para que eu visse crianças, velhos, um casal de namorados, cachorros andarilhos, um mendigo sujo. Vida que caminhava pelas ruas, vida que corria em meu corpo, movimento. O cheiro, o cheiro. Perfume? Cheiro de comida, pão da padaria da esquina. Que simples. Cheiro de pão fresquinho da padaria da esquina. Que simples. Me emocionei com a possibilidade de ver de perto o cesto cheio de pães.
– Podemos ir até a padaria, doutor?
Fomos andando devagar. Entrei na frente. A padaria era grande, bonita. Paredes brancas rodeadas de pães, biscoitos, doces, bolos, roscas. Cheguei pertinho do grande cesto de pão francês, pãozinho de sal. Era cheiroso, muito cheiroso. Perfume? Tive vontade de tocar um deles. Olhei para ele, que imediatamente entendeu e consentiu. Peguei em minhas mãos o pãozinho ainda quente e o cheirei de perto. O perfume, sim, perfume, penetrou-me por dentro e me preencheu com suavidade. Cada célula do meu corpo recebia o cheiro morno e gostoso. Seria gostoso prová-lo, desta vez não olhei para ele, mordi o pão com força sem pedir permissão. Mordi sem doçuras, que morder não é nunca capaz de doçuras. Mordi como se morde. Mastiguei. Engoli. Senti o pão tocar meu estômago, senti que tinha um estômago. Havia um vazio, um espaço por onde o pão entrou em mim. Havia espaço.
Um suave relaxamento me permitiu sentir a suavidade do que me acontecia. Havia um espaço. Se havia um espaço algo poderia entrar e algo poderia se fazer. Havia um espaço... Segurei o pão contra o peito, abracei-o. Cheirei-o novamente antes de dar uma nova mordida. Com a boca suja por farelos que se colaram à minha pele como em pequenos abraços, com um pequeno sorriso que se esgueirava por entre os farelos, me virei outra vez e o vi ainda lá, à minha espera. Quando viu meu rosto, sorriu, e seu sorriso era limpo e largo e me ajudou a abrir-me inteira num sorriso novo. Caminhei até onde ele estava e juntos voltamos ao hospital. Cristiano me esperava no quarto com todas as minhas coisas arrumadas e um vestido novo sobre a cama. Era amarelo com flores. Era lindo e era muito para mim. Como me vestir com tamanha primavera?

(Trecho do romance Desterro, publicado pela Editora Manuscritos, em 2010. À venda na Livraria Café Book, à Rua Padre Rolim, 616, Belo Horizonte - (31)3224 5748)

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