domingo, 30 de maio de 2010

O dia da noiva

Julieta saiu para trabalhar com a noite ainda escura. Logo, dentro do ônibus ainda vazio, mas já mal cheiroso, veria a chegada das luzes do dia. Carregava a bolsa pesada pelo uniforme e pela marmita já fria. Era uma manhã em que não fazia frio nem calor e Julieta seguia sentindo o balanço do ônibus sem achar ruim, nem bom. Ia para o trabalho, mais um dia. O dia todo limpando os banheiros, as salas e os corredores da universidade onde centenas de jovens iam passar por ela sem dizer bom dia. Mais um dia sentindo o cheiro de privada que não saía mais de seu nariz. Mais um dia esperando encontrar o João que um dia tinha falado com ela e depois nunca mais tinha aparecido. João era um garoto como os outros, cabelo meio comprido, barba por fazer, bolsa de lado cheia de livros. Bolsa comum não, era uma bolsa cor de rosa, era engraçado, homem com bolsa rosa. Mas a diferença maior era que ele tinha falado com ela.
– Oi, como é seu nome?
– Julieta.
– Oi, Julieta. Você todo dia limpa a sala onde venho estudar e eu nunca tinha te perguntado o nome. É estranho, não é, Julieta? Meu nome é João, estudo História, você sabe o que é História? Se quiser, te explico.
– Precisa não senhor, obrigada, viu, mas precisa não senhor.
– Então bom dia, Julieta. Obrigada pela limpeza da sala.
– Bom dia, tem que agradecer não, faço meu serviço.
Era um moço como os outros, mas tinha falado com ela e desde aquele dia não tinha aparecido mais. Julieta queria ver o João de novo, pelo menos assim ia falar com alguém, que as colegas de serviço já nem falavam com ela, diziam que era esquisita demais. Julieta era isso, esquisita e calada, mas desejosa de falar. Falar com alguém que quisesse saber dela, e explicar coisas do mundo. Queria, sim, João, saber o que é a História, mas fiquei foi avexada, disse que precisava não, mas agora quero, quero sim, e o João não volta.
Que foi feito do João que não vem mais para as aulas? Era isso o que Julieta pensava enquanto o ônibus rodava livre no trânsito fácil do início da manhã. Em casa tinha deixado a mãe e a tia dormindo ainda, que agora que se aposentaram não gostavam mais de acordar cedo. Julieta pensava que a vida dela era só isso, mais uma vida igual à da mãe e da tia que viveram sempre juntas, mas também muito sozinhas, que duas irmãs não podiam se fazer felizes não, bom seria ter um marido com quem conversar e sentir a vida correndo como se fosse de dois e não de um só, como eram a vida da mãe e da tia, e a dela mesma, que agora o tempo já passava para ela também e certamente ia acabar mesmo aposentada, dormindo até tarde, sem ninguém com quem gastar o tempo livre da vida sem trabalho.
Mas tinha o João que tinha percebido que ela estava lá, limpando todo dia a sala onde ele ia estudar a História. História de quê, meu Deus, que aquele menino tanto estudava? História. Julieta pensava e pensava e não conseguia entender como é que se estuda a história – história é só contar, contar para alguém escutar. Se o João quisesse, podia contar para ele a sua história: nasci por acaso da barriga de minha mãe sem saber quem é meu pai; minha mãe jura que ele morreu antes do meu nascimento e que é por isso que nunca veio me ver; duvido sempre, deve ser um malandro qualquer que minha mãe escolheu para não morrer seca como minha tia que nunca conheceu um homem; cresci sozinha com minha mãe e minha tia que perderam os pais quando eram pequenas; cresci sem brincar na rua, que duas mães é muito para uma menina só: eu não conseguia sair de debaixo dos olhos delas; cresci com minha mãe e minha tia que trabalharam muito para me sustentar e agora estão aposentadas e eu agora trabalho muito para que elas não fiquem sem os remédios. Quando era moça, ia para a escola, e era até boa aluna, mas não me lembro de nada não, que já faz muito tempo. Fiquei foi seca como minha tia, de homem nunca cheguei nem perto, que tenho medo. Fico é bem quieta vendo o tempo passar, limpando as salas e o chão e as privadas. É só isso.
Quando o ônibus finalmente parou no ponto final, do outro lado da cidade, Julieta desceu com a bolsa pesada e foi andando devagar. Dez minutos depois, cruzou o portão grande da universidade e continuou andando até o prédio onde ia passar o dia limpando. Aí viu de longe o João que chegou bem perto falando bom dia, Julieta. E pegou a bolsa que estava pesada do uniforme e da marmita já fria e foi levando para Julieta, perguntando da vida dela e contando das coisas que estudava. Ela estranhava a falta do peso da bolsa que nunca antes tinha sido carregada por outra pessoa, que Julieta nunca tinha tido quem lhe fizesse gentilezas. Foram juntos até o vestiário do pessoal da limpeza. Ele então entregou a bolsa, Julieta agradeceu, o João disse que não foi nada e seguiu para a sua sala de aula.
Julieta trabalhou o dia todo sem sentir.
Em casa, de noite, nem se cobriu. O corpo pegava fogo como corpo de noiva que acaba de se casar.

(Abril de 2008)

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