sábado, 15 de maio de 2010

Rosa no deserto

O Sol a pino esquentava a cabeça de Zeca que comia com o rosto coberto pelo chapéu de couro surrado. Os companheiros, todos agachados como ele, todos de chapéus iguais ao seu, também comiam a marmita requentada no braseiro que eles mesmos aqueciam todos os dias com o Sol no meio do céu. Hora do almoço era hora do calor maior e do descanso que fazia a cabeça voar. Bastava uma pedrinha, uma só, e Zeca largava o garimpo e ia embora com Rosa para a cidade e achava outro trabalho e comprava uma casinha e os móveis e tratava de Rosa com carinho e fazia filhos com ela. Era isso que ela esperava dele, mas Zeca não queria assim, sem nem o dinheiro para a casinha e os móveis e para agüentar a espera do trabalho certo na carteira. Zeca queria uma pedrinha, meu Deus, uma só, para começar a vida com Rosa. Queria riqueza não, queria só uma pedrinha.
Com a marmita vazia no colo, Zeca olhava o campo bem longe. A terra vermelha, torrada pelo Sol que não falhava, dia após dia. A terra machucada pelo Sol. Se não fosse assim, era só plantar e viver tranqüilo com Rosa, comendo o que a terra desse. Mas a chuva não vem e a terra rachada não convida. Zeca veio então para a lavra, o dia todo abrindo buraco com explosão, olho colado na terra aberta, esperança de ver o brilho da pedra. Uma só, uma só. Esperança de pedra que não largava Zeca, que não deixava Zeca ir embora para viver longe dali com Rosa.
Com a marmita vazia e fechada no colo, Zeca pensa em Rosa. Ela não vinha mais trazer café, estava cansada daquela espera.
– Isso não é esperança mais não, homem. Isso é só espera, espera de nada.
– Cala essa boca, Rosa, que não vivo sem minha esperança não.
Rosa se calava, mas a vontade era de falar mais, vamos embora daqui, vamos ver outro lugar e trabalhar e viver com o pouquinho que a gente tiver. Rosa se trancava no quarto e falava com Deus que parecia estar longe dali. Faz esse homem desistir dessa besteira, faz ele voltar para casa e me levar embora com casamento. Faz esse homem me querer de novo. Faz...
Mas Zeca queria, queria sim, queria a Rosa e o casamento e tudo. Queria os filhos e os problemas dos filhos e o cuidado com Rosa. Mas queria antes se preparar, ter o dinheiro que precisava. Parava de pensar e guardava a marmita, com os companheiros já voltando para a lida. Garimpar era passar o dia com terra nas mãos, triturar cada torrão de terra na esperança de encontrar a dureza da pedra. Explodir e fazer buraco, olhar cada canto depois da explosão. Passar a mão na terra, passar a mão em Rosa. Zeca machucava as mãos cada vez mais duras para o corpo de Rosa. Corpo de Rosa cada vez mais doído pela espera de Zeca. Mãos de Rosa que passavam por seu próprio corpo sonhando com as mãos de Zeca cada vez mais raras. Mãos de Rosa que tocavam seu rosto desenhando a tristeza de esperar sem esperança.
No final do dia, Zeca voltava para casa sozinho. Não dormia no garimpo com os outros, sua casa era perto, caminhada de hora e meia. Hora e meia sob o céu escuro, pensando na pedra que não vinha e na espera de Rosa que quase morria. Quando se deitava na cama depois do banho gelado, o corpo doído pelo trabalho e pela caminhada, se apagava antes de todo pensamento. Quando Rosa vinha de surpresa e encontrava o corpo de Zeca dormindo, se deitava ao lado dele e não dormia. Velava o sono de Zeca que era pesado como o peso de seu corpo. Velava sem sono o sono de Zeca que era duro como suas mãos cansadas de alisar a terra rachada. Rosa tomava em suas mãos as mãos do homem que dormia e sentia que as suas também não eram macias e que o trabalho era ferida para o corpo.
Rosa acabava adormecendo com a mão de Zeca entre as suas e quando acordavam o dia quase amanhecia e ele logo se preparava para caminhar de volta para o garimpo onde passaria o dia na esperança renovada pelo sono bendito.
– Vai hoje não, homem, fica aqui comigo. Só hoje.
– Mas minha Rosa, e se for hoje o dia de encontrar? Uma pedrinha só, Rosinha, é o que nós precisamos para ir embora daqui e fazer nossa vida e nossa família...
– E nossos filhos e nossa casa e nossos móveis... Já sei, Zeca, já sei de tudo. Mas quero mais não, quero mais essa espera não.
E Zeca olhava para ela quase com raiva e ia embora com o pão na mão, deixando Rosa sozinha com o café no fogo, olhando da porta da casa o homem caminhando sem olhar para trás, levantando poeira na terra vermelha.
Até que um dia Rosa voltou para a casa onde vivia com a mãe velha e as irmãs solteiras e arrumou as coisas todas que tinha.
– Vai onde, Rosa? Zeca resolveu largar do garimpo?
– É não, mãe. Vou embora sozinha. E é hoje.
– Rosa, mulher sozinha na estrada é mulher vadia. Você não pode não.
– Pois vou, mãe, e se tiver que ser vadia, vou ser vadia. Só não fico mais aqui.
– Vai não, Rosa, que filha minha não sai de casa sem homem. Que filha minha...
Rosa beijou a mãe e saiu sem falar com as irmãs. Andou hora e meia até a estrada grande. Pediu carona e entrou no primeiro caminhão que passou.
– Vai para onde?
– São Paulo.
– Vou também.
Sentou ao lado do motorista velho e mal encarado e fixou os olhos na estrada.
– Quanto é que pago pela carona?
– É nada não. É só fazer a companhia que eu preciso.
– Companhia?
– Pois é. Companhia de mulher.
– É sem-vergonhice o que você quer.
– É só amor.
– Amor não é isso não.
– Amor é o quê então?
Rosa ficou calada pensando em Zeca. Amor com Zeca era bom.
Olhava reto para a estrada, pensando no amor de Zeca e na esperança da maldita que não vinha. Pedra maldita. Olhava reto para a estrada quando o caminhão parou debaixo de uma árvore grande. Quando o homem tocou seu corpo doído pela espera, retesou-se toda, quero não que tenho meu homem. Tem nada, sua vadia. Mulher sozinha na estrada é mulher vadia.
Quando o homem marcou seu corpo com a gosma dele, Rosa pôs para fora o nojo que sentiu. Melou o caminhão com seu vômito e desceu sem calcinha, com a trouxa nas mãos. Sentou na beira da estrada sem saber onde estava, que nunca antes tinha saído de sua roça. Passou a mão pelas pernas e sentiu a gosma do homem que já tinha ido embora com o caminhão borrado. Pôs a cabeça entre as pernas e sentiu o cheiro que era como o cheiro todo da feiúra do mundo.
Impregnada, olhou para a estrada vazia e pediu a Deus.
Deus sabe o quê.

(Abril de 2008)

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