segunda-feira, 3 de maio de 2010

Serena

Hoje estou comum, escorregando pelo fluxo, sem belezas. Antevejo um segredo se esgueirando pela beirada de mim: estou feliz. Meu coração brinca de ternura e não me conta o motivo. Me sinto triste, me vejo alegre.
Busco belezas escondidas, serena, me desconhecendo. O que é feito dos sustos, os fantasmas, onde andam? A quietude já me assusta. Acostumei-me na angústia, que faço? O que está por vir à luz? Talvez lamentos doces, lembranças das lavadeiras do rio. Que rio? Trago lembranças próprias e alheias, já nem sei... Imagino cinco mulheres em cinco pedras grandes nas águas do rio; reclamam do sol, matam mosquitos, se queixam do sabão que é pouco e ruim, da roupa que é muita e muito suja, da patroa que é ruim e finge ser boa, dos filhos que são pobres e não obedecem, do marido que... Imagino que reclamam e que depois cantam, e que depois riem, riem.
Continuo em imagens e já posso me lamentar: meu pai morreu, minha mãe não me abraçou, meus irmãos são turrões, minha irmã não me ouviu, meu amor não veio... minha vida é lenta e sonolenta. É que adoro dormir e andar lento. Quando durmo, sonho, e cada sonho é um sopro do vento. Quando sonho, crio. Criar é um pouco ser livre. Uma vez sonhei que carregava um bebê no colo, ele mamava e de um seio vinha leite ruim, amargo, do outro, o leite bom, doce, maravilha de mel; ele bebia o leite ruim, depois o bom, e eu também sentia o gosto, gostoso de querer morrer sentindo.
Na roça, quando éramos crianças, bebíamos desse leite, eu e minhas primas. Acordávamos cedo, pegávamos as canequinhas de plástico com açúcar, íamos nos sentar no curral. Minha canequinha era amarela, o vaqueiro enchia primeiro só de espuma, nós bebíamos, e depois ele enchia outra vez, só de leite. O sol começando o dia e nós lá, felizes com os bigodes brancos.
Se eu fosse um homem velho, criaria um lindo bigode branco. Se alguém perguntasse como pintei, responderia firme: foi pintado por deus, e faria o desenho de deus, em pessoa, pintando em mim mais uma arte.
As artes de deus são tantas que bigode é coisa simples, tão simples, que ele bem me poderia fazer um agora mesmo, ainda que jovem e mulher. Sairia por aí, de bigode branco olhando as pessoas. Se me olhassem muito, diria: que olhas? sou um homem velho, não vês? E seguiria. Se encontrasse um vendedor de bengalas, compraria uma. Se me ensinassem a tremer e claudicar, aprenderia. Os seios? os apertaria bem firmes com uma faixa, e cortaria os cabelos bem rentes. Quando enfim ninguém me duvidasse, me sentaria no banco da praça e esperaria pelos netinhos. Contaria as histórias de meu passado. Que maravilha inventar histórias para encher toda a vida de um homem. Depois de tudo, lavaria o bigode e esperaria nova arte de deus, ternamente.
A espera me amolece de preguiça. Vontade de deixar tudo correr em paz, sem força. Só parada, espreitando o tempo como quem vê um barco se perder no mar.
A serenidade cria como quem borda. Sem estardalhaços.
Hoje cedo, quando vinha subindo a rua, o vento veio e deixou meu cabelo em alvoroço. Parei para arrumar, só de medo que um homem bonito me pegasse desprevenida. Acho que foi só isso a ternurinha que encontrei. Me desdobrei e de triste fiquei alegre. Me desdobro sempre em esperança.
A esperança é verde e embeleza meu olhar. É beleza assustada, não é de todo dia, sorrateira como coelho em beira de estrada. Ando sempre à procura de coelhos verdes de surpresa. Procura tola, pois já sei que aparecem quando bem querem e nunca onde pedi.
Hoje a esperança está calma, sem sobressaltos. E eu nem sabia que era possível.

(Meados dos anos 90)

2 comentários:

  1. Que delícia escrever assim, derramado, não aos borbotões, mas macio, devagar deixar sair o de dentro, como quem conta estórias pras crianças. Como se fossem estórias de outras pessoas, falar o de si mesma.
    Pai morrendo, vida seguindo sem dar tempo pra sentir a morte, o vazio, a dor. Sem tempo para compartilhar a morte, o vazio, a dor; pra escutar a morte, o vazio, a dor...
    O tempo anda depressa, a consciência fica pra trás, o que foi a vida além de um andar de um lado para o outro, carregando coisas?
    O coelho verde de esperança, vamos criar um desde filhote, pra ele se acostumar com agente e nunca mais fugir? Poder olhar pra ele e abraçar ele até no último dia da vida...
    Beijo,
    Di

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  2. Se eu pudesse, te daria um de presente hoje...

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